segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Arrumação

Não sei o que é mais difícil nesta vida: arrumar papéis, a mala ou o coração. Não levo jeito para nenhuma dessas coisas – precisava de alguém que me ajudasse nessas tarefas tão comezinhas.


É hora de arrumar meus papéis, pois a inspiração acabou; hora de arrumar a mala, que o instinto andarilho chama; de arrumar o coração – o amor se foi.

Chegou o momento inadiável de reordenar os pensamentos, reprogramar a nova vida, traçar efetivas estratégias de comportamento, botar a cachola no lugar, aprender a viver só. Mas como me reconfigurar, me assentar, me aprumar na vida, se não conheço ninguém mais desajeitado para essas coisas do que eu mesmo?

Começo pela papelama. Pois tenho a mania de guardar papéis. Uns guardam dinheiro; outros, esperanças; alguns poucos, amores; a maioria, somente lembranças – eu, papéis. E não admito que mexam neles! Quando saio, aviso à empregada: Não mexa em nada que está em cima da mesa! Uma delas despedi somente porque "fuçava"onde não devia: justamente no montinho de lixo que fica em cima da mesa.

Sou um lixeiro de papéis. Saio para a rua e volto com os bolsos transbordando: cartões de visita, guardanapos, números de telefone, papéis de bala que não joguei fora porque não havia cesto de lixo por perto...

Minha técnica para organizar meus papéis é simples. Digo ordenar, apenas, porque desfazer-me deles eu não consigo. Quando enfio um no bolso, não há como jogá-lo fora facilmente. Rasgá-los ou queimá-los, nem pensar – seria uma heresia. Então, é assim que procedo: primeiro, esvazio os bolsos quando chego da rua. Espalho as dezenas de papeizinhos sobre a mesa e os classifico. Uma parte, pequena, vai para um monte sobre a própria mesa. Desses, a cada semana separo um tanto que vai para uma sacola que deixo em um canto da sala. Dessa sacola, uma vez por mês, jogo alguma coisa fora. No mês seguinte, confiro papel por papel dessa sacola e jogo alguns no lixo. O resto fica ali, para uma nova inspeção no mês seguinte, até que eu me convença de que não vou mesmo precisar de nenhum deles, seja um verso que já publiquei, um extrato negativo de banco, ou um número de telefone. O que sobra, o restolho, fica para sempre guardado num quarto de bagunças. Fuçando ali, vez num ano, ainda descubro contas a pagar, beijos a receber, telefones perdidos, recados não dados e alguns outros malcriadamente respondidos. Em certa caixa lacrada, que de tão bem escondida nem sei mais onde está, nunca mexo. Ali guardei as coisas de um amor que não vale a pena remexer.

Arrumar papéis, portanto, não é meu ofício. Então, deixo essa tarefa inglória para depois.

Tento arrumar minha mala. Ao abrir o armário, desanimo. É sempre assim: se abro uma porta, depois não consigo fechá-la – há fantasmas demais lá dentro; se tiro as roupas da gaveta, não consigo colocá-las na mala; se tento retorná-las, elas não cabem mais na gaveta. Descubro roupas velhas; mas roupas velhas, assim como o amor que passou, são panos e sentimentos que não nos cabem mais. Também não sei arrumar malas. Nem carregá-las. Vou partir assim, sem roupas nem papéis.

Mas antes de partir, devo arrumar o coração. Não se pode seguir viagem deixando amores mal resolvidos para trás.

Pois esse, sim, é o meu problema: coloco um amor no coração, não sei como tirá-lo de lá. Uma amiga diz sempre que eu devia colocar para fora todo o amor que tenho dentro de mim. Penso que ela queria dizer que eu devia jogar fora esse amor que sinto; mas não, ela sugeriu apenas que eu tornasse público o meu amor, como se isso fosse necessário. Uma vez – uma vezinha somente – expus meu coração. Mostrei-o a uma só pessoa. Mostrei-o assim, meio que escondido. Mas dizem que todos o viram, porque quem ama não consegue esconder.

Não posso soltar meu amor por aí, ao léu. Pois é assim o meu amor: se amo, me espalho todo. E se me esparramo, como vou me guardar depois? O amor que espalho não cabe de volta em meu coração. E não posso ficar atrás de mulher alguma, implorando que me devolva o amor tomado.

Vejo que vou acumulando papéis rabiscados, roupas velhas e amores desfeitos na mesma proporção em que rabisco, compro e amo. São três manias que tenho de sobra.

A noite vai chegando e até agora não consegui arrumar nada – somente uma dor de cabeça. Resolvo então juntar tudo, embolar numa maçaroca só, jogar dentro da mochila e ganhar o mundo assim mesmo. Ganhar o mundo? Pois se acabei de perdê-lo...

Ah, mas hoje é sábado. Posso viajar amanhã. Ou depois... Agora, vou pegar a primeira roupa que meus olhos virem, rasgar estes papéis que rabisquei para Alguém; dar uma sacudida no coração e sair para encontrar um novo amor, porque a vida continua...

Descuido

Tens andado muito distraída.
Percebes detalhes
e não percebes o geral.
Não ando mais a te cuidar,
porque não é mais preciso.

Tuas feridas cicatrizaram;
já podes andar sozinha,
por tuas próprias pernas,
a cuidar do teu destino.

Não ando mais por perto;
apenas pressinto teus passos
vindo ao meu encontro.

Não represento mais perigo,
o teu medo de amar de novo.
Minha cama não tem mais lados,
minha vida não tem mais rotina.

Acostumei-me com teu olhar
sorrindo com minha presença.
Tudo se acalmou em mim,
depois de curada a paixão.

E nada mais, meu amor,
nada mais espero de ti,
a não ser que continues
deixando que eu me enleve
e flane sem pressa,
e passeie pelo teu céu,
e penetre em ti,
nuvem doce de algodão,
e te saboreie aos pedaços.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Letras se amam de madrugada

Depois que os escritores vão dormir, suas letras, libertas , se encontram na madrugada, e fazem aquilo que os escritores queriam mas não fizeram.

Não fico até tarde na internet, pois os dias são pequenos para mim e adentro a noite nesse notebook, que chamo carinhosamente de Notinho. Mas sei que tu ficas. Como adoro a noite, e acho que a vida é a noite, penso em abrir uma exceção e te fazer uma surpresa.

Pois ainda esta noite, bem na calada da noite escura, quando o mundo virtual cerrar suas janelas e todos os poetas e poetisas estiverem dormindo, e teus versos, cansados, forem repousar, meu Poema abrirá sorrateiramente a página que deixarás marcada e visitará tua Poesia.

Calmamente, passarei os olhos em toda tua obra, acariciando com o olhar cada verso, cada palavra. Minhas mãos percorrerão todas as curvas das tuas letras. Revisarei cada vírgula, cada ponto, cada exclamação. Teus pensares não serão segredos para mim; mas se revelarão em todo seu esplendor para o poeta que te faz sonhar quando escreves.

Assim que meu lápis tocar tua fonte de inspiração, exposta como uma flor pronta a receber o pólen e gerar sementes, nossas letras se tocarão, misturando-se emes com erres, bês com pês. E elas brigarão, se arranhando, se acariciando, num corta-recorta, num cola-descola, num apaga-reescreve, num solta-não solta, num Deus-nos-acuda, até que formem rimas perfeitas, raras. Teus monossílabos se transformarão em dodecassílabos. Teus ais reprimidos, teus medos contidos, teus rascunhos de amor adolescente, teu amor adulto engasgado, teu prazer sonhado e apenas rabiscado, tudo explodirá em sete rimas, em mil coroas de sonetos...

Lembrar-te-ás vagamente de Homero, Camões, Fernando Pessoa. Quintana e Drummond ressoarão em teus ouvidos. Sabino, Veríssimo e Rubem Braga estarão observando, à procura de inspiração. E, ao som das minhas trovas, te esquecerás das teorias literárias, das professoras chatas, dos leitores que nada sabem do amor. Será um momento só nosso, enquanto os outros nem imaginam letras se procriando na madrugada.

Tuas letras saltarão do papel, e eu as recolherei, uma a uma, em minhas mãos, e as colocarei de volta, na seqüência que achar mais correta. Minha métrica medirá tua rima, na medida exata, milhares de vezes, até que a subjugue, na ponta do meu dedo. E nossos versos, depois de perfeitamente rimados, se unirão no silêncio da madrugada. Nessa hora, a nossa poesia será livre, e teremos toda a licença poética para gritar palavrões sem rima e sem nexo. Só sexo.

Cecília e Cora ficariam ruborizadas, se abrissem os olhos.

E o amanhecer verá, então, nosso duo poético atingir o clímax, num orgasmo simétrico; e, exangues, nós, poetas do amor, e nossas letras, olhos nos olhos, riríamos nosso melhor riso, por saber que conseguíramos escrever, um dentro do outro, em letras indeléveis, os versos que sonháramos. E tua Poesia estará engravidada pelo meu Poema.

Quando os outros poetas visitassem aquela página, encontrariam versos abraçados, gargalhando... e não entenderiam, jamais, como um “b” e um “p” podem estar tão enroscados, e serem a mesma coisa — apenas de forma invertida, como um 6 e um 9.

Faíscas de amor

Quando dois olhares se encontram, nunca se sabe o que pode acontecer. Não se preocupe se for um olhar de peixe-morto. Mas, se saírem faíscas...

Para espantar a tristeza, às vezes penso em você. E quando isso acontece, como agora, há um acúmulo muito grande de energia em meu corpo. Meus elétrons se agitam, colidem entre si e fogem de suas órbitas. O corpo todo parece explodir. Eles saem do meu corpo e então fico leve, pairando no ar, com uma sensação inebriante. Como os elétrons têm carga negativa, quando se afastam sobra apenas o núcleo, que possui carga positiva. Pronto!, fico carregado positivamente — um cátion. Fico alegre, cheio de disposição para tudo. Fico de bem com a vida, bendizendo o dia em que conheci você.

Hora qualquer, esses meus elétrons não voltarão, ficarão vagando pelo espaço, e aí acabou-se eu.
Por uma imposição física, meu núcleo não consegue ficar sem meus elétrons. De tão carregado positivamente, ele implode, se esfacela, vira uma massa informe de subpartículas, os quarks em suas inúmeras e diferentes variedades, pelo menos seis “sabores”: up, down, strange, charmed, bottom, top e tantas outras ainda a descobrir e nomear e tantas outras já descobertas e que não me lembro agora e não vou me lembrar nunca mais, se Deus me ajudar. Imagine que cada “sabor” se apresenta em três “cores”: vermelho, verde e azul. Forma-se então o antipróton, como o pósitron é o antielétron. Desculpe, minha cara, sei que isso não é aula de teoria atômica ou mecânica quântica, mas...

Mas você sabia que poderia existir realmente um antimundo e antipessoas, feitas de antipartículas? Nesse antimundo você seria meu antieu. Nele não poderíamos nos tocar, porque senão desapareceríamos ambos num foco de luz, num cogumelo atômico. Acho que nesse caso “acabou-se o mundo”, porque a energia positiva que tenho causaria uma explosão mil vezes superior à explosão de mil bombas de nêutrons.

Mas desse mal não morreremos: a luz do seu olhar, a antiluz, me neutraliza; reduz-me a antipartículas.

Aqui entra o princípio da exclusão de Pauli, que afirma que duas partículas não podem existir no mesmo estado, ou seja, não podem ter ambas a mesma posição e a mesma velocidade dentro dos limites estabelecidos pelo princípio da incerteza. O princípio da incerteza reza que... bem, ele me diz que vou viver assim, sempre na incerteza... bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... Se o mundo tivesse sido criado sem obedecer ao princípio da exclusão, os quarks não formariam prótons e nêutrons diferentes e bem definidos. Nem haveria átomos também diferentes e bem-definidos. Nem haveria eu e você diferenciados. Seríamos todos uma massa uniforme e densa. Seríamos uma coisa só.

Não somos uma só coisa, eu e você?

Se você me olha viro antimatéria. O vazio. O Nada.

Mas desse mal não morreremos nós: a luz do seu olhar, a anti-luz, me neutraliza; me reduz a anti-partículas.

E se você me olhasse de novo veria que eu vou murchando, corpo e mente. Entro num estado vegetativo. Fico macambúzio. Tudo perde a graça, tudo perde o sentido, tudo é nada. Tudo fica em estado de suspensão, como se tivesse atingido o quinto estado da matéria. É um estado catatônico. Pode passar uma avalanche sobre mim e, quem sabe?, não me afetar em nada. Pode ser que uma mosca me pouse e eu desabe. Pode ser que eu fique vivo... Pode ser. Fico como um adolescente à beira de um jardim a retirar pétalas da rosa e a recitar: mal-me-quer... bem-me-quer...

Pois é assim que me sinto, às vezes. Tudo pára; tudo fica suspenso no ar — só há a surpresa, o encanto e o medo.

Há o medo do seu sorriso, de um gesto, do seu olhar. Outro pedaço dele é saber que há coisas inatingíveis nesse mundo, coisas que desejamos ardentemente, mas que estão muito além das estrelas, na vaguidão do espaço. Esse é um pedaço do medo. Mas ele é tão grande... Parece um buraco negro que vai me sugando, me sugando, me sugando...

Mas que medo é esse, que guarda tantos segredos? Talvez o medo de que os elétrons voltem em dobro e eu fique super carregado negativamente, um ânion violento, de milhares de volts, dando choques e transformando em cinzas quem me tocar; talvez o medo de que os meus elétrons retornem trazendo junto deles os elétrons da verdade. E dela eu não posso fugir dela, apesar de querer. É tão bom sonhar, faz parte da vida. Mas a verdade é que nossos elétrons nunca orbitarão o mesmo átomo, nunca girarão em torno do mesmo núcleo, nunca ocuparão o mesmo espaço. Eu nunca trocarei elétrons com você. Você é feita de matéria especial, vinda do espaço sideral. Você é de outra dimensão, talvez a sexta. Eu, malemal existo na terceira.

Vivendo assim, em diferentes dimensões, no máximo podemos trocar alguns fótons virtuais — já que os reais nunca poderiam ser diretamente detectados —, como se fôramos elétrons passando um pelo outro. Em linguagem leiga, essa emissão de fótons virtuais, que podem ser provocados e detectados como ondas de luz, é o popular “sair faísca”.

Imagine então a seguinte situação: você me toca e o mundo explode, em bilhões de faíscas. Isso também me dá medo, essa sabedoria popular. Pois quando lhe vejo o mundo não fica mais radiante?

São os seus fótons, minha cara, são os seus fótons.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Verde que te quero Rosa

A Natureza não é como um cristal que se parte irremediavelmente; é mais parecida com um coração partido, que se regenera com o tempo...

Nunca gostei de extremos. Entre o preto e o branco existem milhares de nuances de cinza; entre o amor e o ódio há sempre a possibilidade de uma coexistência pacífica; e no meio dessa história de o mundo se acabar amanhã há a inteligência do homem para consertar o que está sendo feito de errado.

A Natureza é delicada, e seu equilíbrio facilmente quebrado ― mas não é como um cristal que se quebra para sempre. É mais parecida com um coração partido. Ela mesma, per si, se regenera, se lhe damos tempo para isso. Devemos preservá-la, mas não chegar a certos exageros de quem nada entende do assunto. Os “verdes”, alguns alçados a essa condição por fanatismo sem causa, andam exagerando quanto ao fato de uma simples flor ter o poder de alterar o equilíbrio ecológico do mundo.

Em Burarama, faço parte de uma geração que viu matas serem derrubadas, e que tomou para si a tarefa de consertar o que seus avós desfizeram: plantamos árvores aos montes e flores também, muitas flores. Minha irmã tem um jardim imenso, onde a natureza se renova a cada manhã.

Naquele domingo de início de primavera, o almoço em família acabara ― sem brigas ― e todos se refestelaram nas poltronas e redes da varanda. A conversa corria solta e as crianças brincavam no jardim.

De diferente, quebrando a placidez do ambiente a das conversas familiares, havia uma prima que saíra desde pequena para a cidade, e nunca vivera na roça. Heloísa sempre fora tímida e medrosa, calada demais. Não se sabe pelas barbas de quem, virara militante política, ativista ambiental, uma “verde” extremista. E começou a nos dar lições e fazer previsões catastróficas acerca do futuro da humanidade. Nós ouvíamos por ouvir, sem responder ao monólogo. Demos-lhe o palanque, mas não nossos ouvidos.

Sua filha, mais para rosa que para verde, brincava perto de umas flores. A menina parecia um beija-flor rodeando sua fonte de alimentos. A flor, pensei eu, era o alimento da alma daquela admiradora da natureza. A “verde” avisou ― avisou, não: ameaçou ―: “Não mexa nas flores, Rosa Helena. Se mexer, apanha!”. Mas crianças são crianças. Se me lembro bem, essas ameaças entram num ouvido e saem noutro.

E Heloísa ficou recitando o Código Florestal, na parte que interessava ao momento: “Art. 26º - Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o salário mínimo mensal do lugar e da data de infração ou ambas as penas cumulativamente: ...n) matar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia ou árvore imune de corte...”.

Sobre a nossa Lei Ambiental (Código Florestal), eu, que sou Engenheiro Agrônomo, e meu cunhado, que é Técnico Agrícola, já discutimos bastante. É uma das mais avançadas do mundo, e faz bem ao proteger as matas, as árvores. Mas, de tão avançada, chegou ao cúmulo de punir com multa pesada aquele que pisar na grama de um jardim público. Ora, e onde ficam os piqueniques? E o futebol, instituição nacional?

Daí a pouco, Rosa Helena chegou perto da mãe trazendo uma flor, uma simples florzinha, retirada de uma arvorezinha cheia delas. A mãe ficou possessa, resmungou um “eu te avisei” e deu um tapão na menina, na Rosa mais bonita daquele jardim.

E eu, policial em descanso, mas sempre alerta, tive pensamentos contraditórios. Passo as algemas nessa “adulta que nunca foi criança”...? Acabei prevaricando.

Rosinha não berrou, apenas derramou uma lagrimazinha. Nós todos nos olhamos, e lembramos das quantas artes havíamos feito sem levar sequer um brigueiro. Definitivamente, como já disse o poeta, não seria a retirada daquela flor que deteria a chegada da primavera. E todos devem ter pensado como eu: “Pobres dessas ‘verdes’, que consideram uma flor intocável, mas se acham no direito de bater numa criança, numa inocente criança que admirou a natureza e quis ofertá-la a quem mais ama!”.

Pois é, amadas desse mundo, fossem os homens “verdes extremistas” e nenhuma de vós receberíeis, jamais, sequer uma rosa!

Meus amores

Tenho inventado,
ultimamente,
meus próprios amores,
muitos deles.
Por muito ter amado,
sei como são.
E, relembrando,
recrio a cada manhã
amores loucos, desequilibrados,
amores calmos, bem temperados,
invento sonhos, brincadeiras,
dengos, carícias, cafunés,
ciúmes, brigas, loucuras na cama.
A cada manhã
preciso de um novo amor,
porque não vivo sem amar.
A figura da minha amada,
porém,
permanece sempre a mesma
a cada uma dessas invenções,
por que, dos amores que invento,
o único que eu queria
que virasse realidade
era mesmo você!

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Vivendo e morrendo

Às vezes a gente acorda, levanta, recebe um “bom dia, tudo bem?”, responde que “sim, está tudo bem” e fica pensando: “está tudo bem mesmo, estou vivo?”. E seguimos, por força da necessidade, a rotina dos dias: caminhamos pelas ruas, sobrepostos a nós mesmos, autômatos dando bons dias e xingando, rindo e chorando, amando e desamando, trabalhando e espreguiçando, escrevendo e rabiscando, vivendo e morrendo...

É isso: não sou apenas um homem, estanque nessa morte-vida: ora estou vivo, ora morto. E surpreendo-me por vezes em estado duplo: vivo e morto simultaneamente. Essa dualidade exige uma resolução rápida, antes que eu me quede morto, somente.

Anuncia-se para breve a construção do computador quântico, com processadores qubits. Um qubit pode ser zero e um ao mesmo tempo, dois estados sobrepostos. É uma discussão antiga, “um gato de Schrödinger”. Em 1935, esse alemão, um dos criadores da física quântica, questionou se um gato ― grosso modo, um grupo de átomos ― poderia estar morto e vivo ao mesmo tempo. Nunca gostei de gatos e tanto se me dava se eles estavam vivos ou mortos. Era discussão para boi dormir, pensava eu até ontem.

Hoje, a sobreposição de estados me interessa ― não a física, mas a espiritual. Essa sobreposição não seria eterna, posto que é sensível a qualquer perturbação do meio. E como há perturbações no meio, e principalmente dentro de mim! Sobrepunha-me por pouco tempo, normalmente. Mas ultimamente ando questionando a física quântica. Tenho andado sobreposto há bastante tempo. E a questão nem é se estou vivo ou morto, mas se o amor morreu ou não em mim. Amarei novamente, estou amando ou jamais voltarei a amar?

Meu processador cerebral é comum, e quando recebe a tarefa de procurar uma mulher numa lista, ele tem de ler nome por nome até achar aquela que me seria adequada. É um processo demorado, que levará anos. E estarei morto quando ele acender a luz verde do “eureka”. Preciso que desenvolvam rapidamente esse computador mágico, capaz de fazer essa busca geral de uma vez só, numa única grande operação, usando a poderosa lógica da física. Eu sou um ilógico: só amo quem não deveria amar.

Dentro de um par de anos talvez ele esteja na minha mesa (até lá vou me virando, ora com uma Maria das Dores, ora com outra Maria Dolores). Daí sentar-me-ei à rede, numa manhã de domingo, e darei a ordem ao “Quantinho”: ache a mulher ideal para mim!

E devo deixar mesmo essa tarefa a cargo de um computador. Aos meus olhos e ao meu coração elas andam parecidas demais, como essas chinesas ― cara de uma, focinho de outra.

Restos

Que fazer agora dos restos, das sobras,
Da cama que ficou enorme, gigante,
Do edredon espalhado, cheio de dobras,
Da dor ― de te ver tão longe ― pulsante?

Que fazer com tudo o que escrevemos,
Dos textos abandonados, sem rabiscos,
De tudo que devíamos e não vivemos,
Dessa vida insossa, a só, sem riscos?

De que vale falar sobre minhas dores,
Das letras que guardei só para te dar,
Se agora só pensas em outros amores?

Não há mais nada a dizer, a rabiscar.
Quando as letras emudecem, sem cores,
Resta apenas a voz da alma, a cantar...

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Mulher de escritor

De que vive um escritor, senão de sonhos? Nos seus devaneios, o escritor tudo pode, até mesmo imaginar que algum dia Deus criará uma raça diferente de mulher: a mulher-do-escritor.

Não existem seres humanos perfeitos. Mas não custa sonhar que as mulheres podiam ser. E mulher perfeita deveria ser a mulher de um escritor. Basicamente, assim:

Que fosse discreta, mas não acanhada; que fosse sensual, mas não assanhada; que soubesse receber com classe e economicamente, mas não se negasse a distribuir sorrisos; que promovesse o seu marido nas festas, mas que o poupasse dos chatos; que fosse amiga das mulheres dos outros escritores, mas não dos outros escritores; que lesse todos os seus escritos, mas só elogiasse aqueles que merecessem; que quisesse matar os críticos, mas que soubesse ser carinhosamente crítica; que desse sugestões ao texto, mas sem mudar o ritmo da prosa; que soubesse um pouquinho de português e literatura, mas não mais do que ele; que ordenasse todos os seus arquivos no computador, mas que não apagasse os emails que ele recebe de outras escritoras; que fizesse beicinho quando ele elogiasse uma poetisa, mas que nunca, nunca mesmo, reclamasse.

Por tudo isso, nem precisaria ser linda.

Mas há mais coisas que uma mulher de escritor precisa ser para poder ser considerada como tal:

Que não o incomodasse com as contas a pagar, mas que as pagasse; que cuidasse da sua agenda, mas que o lembrasse do futebol aos sábados; que o deixasse dormir na rede, enquanto a inspiração não viesse; que fosse capaz de ir às bancas comprar os livros dele, secretamente, para distribuí-los a quem não os pudesse comprar; que tivesse coragem de pedir patrocínio para os livros dele, mesmo que ele fingisse não querer; que não se ligasse demais ao dinheiro, mas que o mandasse trabalhar quando desse o meio-dia.

Por tudo isso, não precisaria ser rica.

Mais ainda:

Que me deixasse trabalhar em silêncio, atendendo à porta e ao telefone, enquanto assistisse à novela; que me trouxesse uma inspiradora taça de vinho quando as palavras me faltassem; que, de vez em quando, desse um suspiro alto ao ver o galã beijar a mocinha; que eu pudesse surpreendê-la me olhando, embevecida; que, ao terminar a novela, eu ouvisse o barulho do chuveiro, e logo depois sentisse o cheiro do café sendo passado; e que ela se achegasse com uma xícara e dissesse: aceitas um beijo fresquinho? E, quando a madrugada chegasse, ela passasse na penumbra da sala apenas de camisola, fingisse um bocejo e me desse "aquela" olhada fatal. Aí eu saberia que era hora de deixar a fantasia das letras e viver a vida real.

Por tudo isso, nem precisaria ser formosa.

E, para finalizar:

Para ser mais que perfeita, a mulher do escritor deveria também ser escritora.

Por tudo isso, nem precisaria ser inteligente.

Mas não se preocupem, atuais mulheres de escritores e candidatas a futuras mulheres de escritores. Escritor nenhum merece mulher assim.

Aliás, mulher assim não existe – é só uma criação delirante de um escritor que vive só.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A Guria

Há, sim, uma guria,
de olhos-jabuticaba,
perdida nesse mundo,
que mais dia menos dia,
surgirá, assim, do nada,
apagando teu passado,
teu mundo obscuro,
indeciso, rejeitado,
revelando o novo,
o desconhecido,
o tão-esperado.
Eita, seu moço
de olhos cegos,
há uma guria,
bem aí (olhe!),
chamada Maria,
que te resgatará
ainda nesta vida.