terça-feira, 2 de junho de 2009

A vingança dos sons de antigamente

Todos nós trazemos, nos escaninhos de nossa memória, lembranças de muitos sons de antigamente. São sons familiares, que podem nos assaltar a cada momento do dia, mas que preferem a noite para nos alegrar ou assombrar. Eu trago muitos deles comigo, como o pocar da minha jogadeira Marraia. Roberto Carlos deve ouvir constantemente, na sua mansão em São Paulo, o ranger das rodas do trem sobre os trilhos.

Rubem Braga tinha a ilusão de ouvir, noite adentro, lá na sua cobertura, o murmúrio do Itapemirim sobrepondo-se ao espoucar das ondas do mar de Ipanema. E dizia, cinco décadas depois, ainda ouvir os sons de antigamente: ”Um cacarejar sonolento de galinhas numa tarde de verão; um canto de cambaxirra, o ranger e o baque de uma porteira na fazenda, um tropel de cavalos que vinha vindo e depois ia indo no fundo da noite. E o som distante dos bailes do Centro Operário, com um trombone de vara ou um pistom perdidos na madrugada”. E revela que o som mais comum era o do velho relógio de parede que levara para sua casa no Rio. “Sua batida é suave, como costumam ser a desses Ansonias antigos; e esse som me carrega para as noites mais antigas da infância”.

O velho relógio de parede, um Ansonia hoje centenário, sempre pertenceu à casa de Rubem. “Quando meu pai comprou a nossa casa de Cachoeiro, esse relógio já estava na parede da sala; e que o vendedor o deixou lá, porque naquele tempo não ficava bem levar. Há poucos anos trouxe o relógio para minha casa de Ipanema. Mais velho do que eu, não é de admirar que ele tresande um pouco”, conta ele, em crônica de 1977 (Os sons de antigamente).

O relógio voltou à casa dos Braga em Cachoeiro, como uma relíquia. E devia estar batendo erradamente as horas, que era assim que ele devia funcionar mesmo. E lá ficava ele, a marcar o tempo a seu bel-prazer.

Pois há coisa de dias, levaram o velho relógio de parede da casa dos Braga. Sem permissão. E só poderia ser assim mesmo, pois de outra maneira não sairia de lá. Não foi coisa de ladrão comum; foi coisa de quem sabe o valor histórico da peça. Foi furto de encomenda.

O mandante do furto do Ansonia também deve ter lá seus sons que o perturbam. Não devem ser poucos, pois um ladrão não é uma pessoa normal, que traga boas lembranças da infância. Mas o dito cujo arranjou outro problema agora: um som que era agradável para Rubem, mas que será o inferno em sua vida.

O velho relógio de parede há-de perturbar-lhe a vida até o fim dos tempos, ou até que devolva o precioso bem cultural da cidade: há-de andar tocando a ave-maria em pleno meio-dia, e o desgraçado vai ter de se ajoelhar, penitente, em plena rua, ou onde estiver; há-de bater as onze da noite em plena hora do almoço, e o desalmado mergulhará em sono profundo sobre o prato de comida; e ainda baterá as nove da manhã bem no meio da madrugada, e o ladrão preguiçoso terá de se levantar, já atrasado, e perambular pela noite deserta atrás de seu trabalho.

O novo “dono” do “Insonia” doravante sofrerá de insônia terrível, e perderá totalmente a noção do tempo. O relógio baterá horas durante a noite toda, e cada badalada soará como o ribombar de um canhão, ensurdecedor, furando-lhe os tímpanos. O dia há de virar noite, e os fantasmas dos velhos Bragas hão de puxar-lhe os pés...

Que ele ande, desande, tresande, e que o ladrão vague pela vida, sem saber se é dia ou noite.E, se o fruto do furto não for devolvido dentro de um mês, o velho Ansonia amarrará seu tempo ao do seu ladrão, e seus ponteiros desembestarão e passarão a girar a uma velocidade vertiginosa e, passado mais um mês, o ladrão morrerá de velhice.

Que Deus me ouça!

http://www.relogiodorubem.blogspot.com/