segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O silêncio do escritor

O escritor constrói uma cidadela de palavras em torno de si; ele mora num condomínio de palavras mudas. E faz do silêncio de suas palavras um grito de amor.

Durante décadas construí meu silêncio. E foi um processo demorado e doloroso. Ano após ano, deixava de dizer "eu te amo", "eu te gosto", ou mesmo o simples e quase obrigatório "bom dia!", até chegar ao ponto de nem mais resmungar. Senti-me bem, assim. O que dizer, se não há a quem dizer? E, nesse mutismo, escrevi casas, edifícios, condomínios de palavras mudas. Em volta, ergui um muro isolante e protetor. Dentro dessa cidadela, coloquei personagens silentes. As pessoas da minha cidade sem palavras cumprimentavam-se apenas com um aceno de cabeça, riam digitando "rsrsrs", gostavam-se apenas com um sorriso, namoravam apenas com abraços, diziam "eu te amo" apenas aumentando a pupila de seus olhinhos miúdos, declaravam sua paixão escrevendo cartas para a lua. Sons, nunca; eis que eram proibidos. Bani, de minha cidade, de minha vida, o som melodioso das vozes.

A cidadela cuidadosamente planejada e erguida por mim era uma proteção contra o amor e tudo o que ele carrega de ruim consigo. Era talvez um treinamento para quando me deparasse com o amor tão sonhado. Treinava em palavras mudas, de forma velada, o sentimento que explodiria em palavras vivas quando o instante mágico acontecesse. Nesse instante, eu teria na ponta da língua as coisas que uma pessoa amada gosta de ouvir.

Cidadela sem vigias, sem senhas de proteção, foi o que ergui. Minhas páginas, desguarnecidas, abertas, expostas, foram a porta de entrada de uma leitora não convidada. E, de repente, meus escritos foram invadidos por uma poetisa que me fez sentir vontade de gritar. A própria voz dela, em meio ao meu silêncio auto-imposto, era um libelo à libertação da minha voz. Ela, sem pedir licença, leu e amou minhas letras proibidas, rabiscou meus textos, revisou meus conceitos, deu novo rumo à história da minha vida. Cheguei a acreditar num final feliz. E quando eu quis gritar, foi preciso que o silêncio baixasse entre nós.

Não queria silêncio agora, pois o amor não vive disso. E fica o grito preso na garganta, a mão travada, os dedos amarrados, a caneta impedida de falar.

Nessa fictícia cidade que criei para mim, imaginei-me um dia a passear pelas ruas, levando debaixo dos braços meus escritos. Eu, mudo; eles, falantes. Em plena Praça dos Escritores, ladeada de livrarias, papelarias, e freqüentada por milhares de leitores, eu abriria meus livros e os lançaria ao céu. Deixaria – e desejaria – que minhas letras ganhassem vida, saltassem do papel e caminhassem pelas ruas, gritando o nome da minha amada, declamando meu amor por Ela.

Ao passante, elas diriam: "Bom dia, sabias que M ama T?"; ao vendedor da esquina, "Sabias que T ama M?"; ao mendigo, "M e T se amam". À professora, ao jornalista, ao apressado, ao motorista, a todos os viven-tes as minhas palavras diriam algo de bom, expres-sando minha alegria e felicidade por amar e ser amado.

E todos nos reconheceriam nos semblantes felizes e sorridentes das estátuas que eu mandaria erguer no meio da Praça do Amor: bustos grandiosos, imponen-tes, o meu sempre ao lado do dela: ora eu corrigindo os textos dela; ora ela amando minhas letras; e muitas, muitas estátuas em que estaríamos entrelaçados: eu rabiscando as letras dela; e ela, as minhas.

Era assim a cidade que tentei reconstruir depois que nela veio morar quem amo.

Minhas letras, porém, andam caladas. O silêncio se impôs sobre elas. E, assim, vigiadas, controladas, censuradas, deambulam cabisbaixas pelas ruas, envergonhadas por estarem encarceradas em sua própria casa, privadas de sua função primordial: cantar o amor e tudo o que ele carrega de bom consigo.

Mas um escritor é feito mesmo de silêncio. Silêncio e dor. Ele constrói seu condomínio de palavras mudas apenas para nele ser encarcerado e sofrer em silêncio.

Talvez seja assim mesmo o amor entre escritores: feito apenas de silêncios, papéis, sons esparsos, palavras mudas, segredos, crônicas, enigmas, símbolos, poemas, presentes amorosos, calmas a mais, palavras de amor, risos e rabiscos no papel... E silêncio, bastante silêncio, enquanto o amor descansa da luta terrível que está travando.

Ainda bem que um grande amor não se acaba somente pelo silêncio.

Um comentário:

Renata Mofatti disse...

Silenciosamente triste...