domingo, 5 de outubro de 2008

Palavras mudas

Dei de falar sozinho, agora. Falar, não digo; mas resmungar, sim. Resmungo a toda hora palavras ininteligíveis ― palavras mudas. Fiapos de sons, é o que emito. Nada mais. Minha voz trava na garganta; dali não passa ― há um dique: a palavra pensada bate nas cordas vocais e volta ― não se transforma em som. Eu falo para dentro, converso comigo mesmo.

Sento-me a uma mesa de barzinho, só, e começo minha ladainha. As pessoas me olham como se eu fosse um bêbado ― um ébrio diferente, criado pela Lei Seca. Alguns pensam que estou falando com eles, e me encaram. Depois percebem que sou apenas um louco, fazendo um discurso amoroso para platéia nenhuma.

Meu discursus amoroso não é dialético; ele gira como um calendário perpétuo, uma enciclopédia afetiva: é moto contínuo: alimenta-se de si mesmo. Quanto mais resmungo, mais palavras mudas me aparecem. Nenhuma lógica liga essas palavras nem determina sua contigüidade; elas vão e vêm ao sabor dos humores e amores, das cervejas ou licores: as figuras que as ilustram estão fora do sintagma, fora da narrativa, são Erínias; se agitam, se chocam, se acalmam, voltam, se afastam sem nenhuma ordem, como um vôo de mosquitos.

É como se eu estivesse numa mesa cheia de pessoas que trocam constantemente de lugar, numa eterna dança das cadeiras. Os mais diversos e insólitos personagens fazem parte dessa conferência fictícia. E todos me perguntam por Ela. É sina.

Ontem à noite, aconteceu no teatro. Mas acontece a toda hora, por onde quer que eu vá. Não sei mais quem sou, dissociado Dela. As pessoas não mais me reconhecem quando estou só. Ou parecem perceber que sou apenas o Marcelo pela metade. Falta-me algo.

“Cadê fulana?”, pergunta-me um menos conhecido. “E aquelazinha?”, indaga uma recém-conhecida, pretendente a não sei o quê. “Mas cadê ela!?”, censuram-me os amigos. Como se fôramos uma coisa só, eu e ela. Como se fôssemos uma arco-íris compondo uma só cor. Mas agora aquela luz única que éramos passou pelo prisma da separação e se decompôs em milhares de matizes. O azul ficou nos olhos dela; o amarelo, em meu sorriso; o roxo, nas marcas em minha carne; o cinza, em meu olhar; e o preto, em minha alma.

“Amigos e conhecidos, eu vos anuncio: eu, agora, sou só. Um homem só. A imagem Dela — à qual estava colado, da qual vivia — não existe mais: ora é uma catástrofe que parece afastar-me para sempre, ora é uma felicidade excessiva que me faz recuperá-la. De qualquer modo, separado ou dissolvido, sem Ela não sou reconhecido em lugar algum.”

(Esse sermão foi dito em voz baixa ― ninguém ouviu ―, mas o fato de estar abrindo e fechando a boca fez com que todos os olhares se virassem para mim).

Nunca fomos nada, mas passávamos essa impressão. Talvez fôssemos almas gêmeas e nunca tenhamos descoberto isso. Ou fomos mesmo almas que se cruzaram sem se reconhecerem, sem terem procurado um aprofundamento, um comprometimento para vidas futuras. Ou, talvez, nada mesmo. Ela se foi e me deixou assim, falando comigo mesmo, ou para o vento.

E converso com minha empregada, que me aparece em visagem, e eu xingo ― pois que, ontem, ela deixou um recado assim: “Seu Marcelo, espero que goste da faxina. Limpei toda sua mesa. Amanhã digo onde guardei os papéis”.

São essas coisas que me enfurecem e andam me deixando assim, brigando comigo mesmo.

Ouço um grito ― nova visagem ― e “converso aos berros”, com Júlio, sobre futebol. Ouço minha mãe atrás de mim dizendo: “Não beba mais, meu filho”. Não respondo. São muitos os fantasmas que me assombram numa mesa de bar.

Mas olho por cima dos ombros e vejo a moça mais linda do mundo. Ela me encara. Pena que não esteja na minha mesa.

Não sei de onde me vêm essas vozes. Talvez me apareçam porque eu esteja muito só. E já disse o Criador: “Não é bom que o homem seja só”. Mas como não ser só nesse mundo, onde cada um quer manter sua individualidade? Quem partilharia comigo uma vida de monge durante o dia, trabalho em escala de vinte e quatro horas duas vezes por semana, e a loucura das noites de folga?

Estou só. E mudo. Não respondo a e-mails amorosos, não correspondo a olhares furtivos. Alguém me liga, não atendo; ligo para alguém, não sou atendido. Estou mesmo fora-de-área. Ando só, mal acompanhado de mim mesmo.

Ando assim, meio tímido, falando comigo mesmo. Acho que a moça que está por trás dos meus ombros quer falar comigo. Mas, ba, que me custava...?

Olho para ela, resmungo alguma coisa, e acabo ficando só, com meus fantasmas.

Quem haveria de querer ouvir minhas palavras mudas...?

3 comentários:

Caetano disse...

belas palavras, Marcelo.
quando uma parte de nós segue em frente o mundo fica sem chão. Falar sozinho é desabafar pra ninguém.

Belas palavras, meu amigo.

forte abraço

Paixão, M. disse...

Olhe quem está aí em cima a comentar sobre falar sozinho, kkk... muchacho Caetano, a testemunha dos meus desvarios. kkk!

Marcelo! Então temos o mesmo hábito sordido, rs.. Mas enquanto suas paravas se contêm à altura da garganta, as minhas saem claras e embaraçosas rua afora :D

Adorei o texto, destaque para a parte em que conversa com a empregada. Kkkk!

beijo!

Renata Mofatti disse...

Qual seria mais silenciosa... O que seria mais silencioso? Um condomínio de palavras mudas? O Silêncio do Escritor? Um Ghostwritter?