domingo, 28 de setembro de 2008

Da mistura dos barros...

Se eu fosse escultor, misturava os barros e esculpia uma mulher; se fosse Deus, dava-lhe o sopro da vida; e diria: ame-me! Mas sou escritor – apenas descrevo meu sonho.

Acordo com a campainha tocando. Quem pode ser a essa hora? É a Avon que me chama. A voz da senhora é animada demais para o horário madrigal. Ela se convida, entra e me mostra seus produtos, revelando, enfim, o motivo da sua visita intempestiva: anti-rugas, anti-isso e anti-aquilo. Não, parece que ela não vende produtos anti-vendedoras. Claro, pois ela mesma se ufana de ser uma "consultora"!

E o papo parece ser uma consulta dermatológica. Tento dizer que acabei de acordar, por isso é que pareço meio velho, que essas marcas de expressão são minha marca registrada, retratos da vida meio louca que me leva, e não são minhas o tempo todo, mas apenas me pousam na face após uma noite mal dormida. Ela não me dá tempo. Diz que o tempo é amigo das rugas. Aconselha-me a evitar noitadas, que a gandaia dá mesmo rugas precoces, mas que tem o produto certo para me rejuvenescer. Digo que perco as noites porque escrevo de madrugada.

Ela nem ouve. Como não vê garrafas vazias, apega-se ao cinzeiro cheio e deita falação. Ainda arrisco dizer que vou arranjar uma namorada e que isso me rejuvenescerá a pele. Ela responde que desse jeito, com essa pele ninguém há de me querer. "Eu tenho o produto certo para a pele do seu rosto", assegura. E patati, patatá... Saca de sua bolsa diversos mostruários e coloca-me vários potes na mão, com argilas de todas as cores. Enquanto ela continua falando, abstraio-me e concentro-me em ler sobre os produtos.

A indústria mundial de cosméticos vive de lançar modas, mesmo que a pretensa moda tenha milhares de anos. Muda-se um nome, investe-se em propaganda maciça e o que era velho novo fica. Eu sabia que a argila já era usada como máscara facial desde tempos imemoriais, bem antes da Bíblia, que cita suas propriedades curativas e "milagrosas", mas a propaganda nos faz esquecer dessas coisas; e nos faz crer, também, que é a "última descoberta da ciência". Não creio que um simples argilomineral vá melhorar minha aparência; mas, enfim, a moda agora é a argila branca.

Mas a Bíblia há de ter alguma razão. Afinal, se Deus fez os homens do barro, e nos fez tão belos, uma retocada com argila deve nos melhorar, sim. A mim, principalmente, há de melhorar muito, pois acho que Deus cometeu alguns deslizes ao me modelar.

Na prática, todos conhecemos a argila como barro, o mesmo barro que tem mil e uma utilidades: suas aplicações vão da construção civil à medicina, passando pelas indústrias de papel, cola, inseticidas, lubrificantes, siderúrgicas, de cimento etc. e, é lógico, de cosméticos.

Tenho certa intimidade com argilas desde menino, quando virava barro com meu pai para o plantio de arroz, ou quando tentava inutilmente fazer bolebas de barro cozido. No segundo grau, no curso de Técnico Agrícola, aprendi que argila é o resultado da decomposição das rochas. Estas se vão intemperizando, se desagregando e no final restam a areia, o limo e a argila. No curso de Engenharia Agronômica aprendi que elas podem ter várias cores, do cinza ao branco, passando do vermelho ao amarelo, beirando o róseo e o creme. E lembro seus nomes românticos, com jeito de louras russas: montmorillonita, ilita, haloisita, vermiculita, gibbsita, caulinita.

Durante o mestrado em Solos e Nutrição de Plantas, estudei as argilas a fundo. E uma das coisas que mais me lembro foi ter passado uma noite inteira de Natal no laboratório lavando as ditas cujas – as argilas, que infelizmente não eram louras nem russas nem mineiras. A lavação era um processo químico de lixiviação para a retirada de óxidos de titânio e de ferro, sendo estes últimos os que conferem coloração às argilas: os férricos (oxidados, como a hematita) são os responsáveis pela cor vermelha e os ferrosos (reduzidos, como a goethita), pela amarela. Foi um lava-seca-lava-seca infindável, até que a argila surgiu numa cor conhecida minha: totalmente branca.

Depois fomos ao CPRM, para analisar as fases mineralógicas presentes no resíduo, identificando-as por difratometria de raios-X. E confirmei que o barro branco, ou caulim, é resultante da decomposição de feldspatos e aluminossilicatos e é constituído de material formado por um grupo de silicatos hidratados de alumínio, principalmente caulinita e haloisita. Também ocorrem minerais do grupo da caulinita, como diquita, nacrita, folerita, anauxita, colirita e tuesita. São nomes femininos bonitos que se contrapõem à horrível fórmula geral: Al2O3.mSiO2.nH2O. E não são nada nutritivos. É que lembro mais ainda, de haver provado, nesse dia, o gosto da argila: um gosto horrível de barro! Ainda bem que a mulher foi feita da nossa costela, e não diretamente da argila branca.

Como há barro de todas as cores e texturas, imagino que Deus brincou de fazer mulheres com cada um dos barros de que dispunha no Paraíso: as escandinavas, as africanas, as peles-vermelhas, as asiáticas; depois, misturou tudo e fez as morenas douradas. Cozinhou algumas demais e as fez duronas; outras, esfarelentas; perdeu a mão e fez também as molengas. Umas, restaram pegajosas; outras, escorregadias demais. Fez também algumas caladas; quase todas, faladeiras (fê-las com dois ouvidos e uma só boca, mas estas não perceberam a dica). Muitas delas, esculpiu a facão; umas poucas, a canivete. Em todas, colocou Ele um pouco de equilíbrio e muita loucura.

No Paraná, enquanto dava aulas sobre nutrição mineral de plantas, observava a Terra Roxa e ficava quase roxo de saudades das minhas pesquisas. Depois disso, voltei para Burarama e me perdi das argilas. Nunca mais efetuei nenhum estudo sobre elas, que voltaram a ser o que sempre tinham sido: um estorvo nos dias de chuva. Se, ao menos, eu fosse escultor ou fabricante de cosméticos... Pois foi o anúncio de cosméticos que me fez recordar e lamentar meu pouco contato com a argila branca quando eu era menino.

O sítio do meu avô, o Córrego do Telheiro, ficava situado ao lado do Ribeirão Floresta, cuja margem era local mais do que propício ao aparecimento de depósitos aluvionares argilosos. E esse era um trabalho que os córregos Forquilha, Cantagalo e Petrópolis faziam pacientemente, depositando, a cada enchente, ao longo de milênios, delicadas camadas de argila branca sobre outras já consolidadas. E ali se formou um espesso pacote aluvionar secundário, aflorante, coberto por uma fina camada de areia. Naquele grande buraco de cerca de metro de fundura, situado na várzea estreita, vovó nos mandava – e íamos todos, alegres e saltitantes – cavoucar o estranho, raro e bonito barro branco, que trazíamos em baldes ou sacos. Então fazíamos pelotas de cerca de quinze centímetros de diâmetro com aquela coisa pegajosa, que vovó ia guardar em grandes latas, cobrindo-as com água para que não ressecassem e endurecessem.

Hoje, olhando minhas tantas rugas, e lembrando de toda aquela argila branca, lamento meu desconhecimento à época. Eu não sabia que podia passá-la na cara. Eu tinha nojo. O único destino dado àquele barro milagroso era o fogão a lenha. Vovó preparava uma papinha liguenta, misturando o barro e a água até que virasse um creme. Mergulhávamos ali um pedaço de saco de algodão e o passávamos no fogão, que ficava de uma alvura sem par!

Mas, que fazer? A gente aprende as coisas, muitas das vezes, quando é tarde demais. Azar meu. A vendedora está satisfeita com uma venda tão grande logo pela manhã e me apresenta a conta. Eu estou desolado. Hei de pagar caro, agora, para fazer um tratamento que me era de graça.

E fico aqui, com vários potes de barro na mão, sozinho nesta casa enorme, e mais velho do que quando acordei. E como não é bom que o homem fique só – e nem mal acompanhado –, arvoro-me em Deus e, com um ar místico, misturo todos os potes, fecho os olhos, ergo as mãos e grito: "Faça-se uma mulher para mim, à minha imagem e semelhança!".

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Classificados

Contrata-se escritora full time

Escritor sem inspiração, cansado da lida de conduzir os destinos de seus personagens, sem capacidade de controlar seu próprio destino, precisa de escritora disposta a escrever, a cada dia, um capítulo diferente para a vida insossa que o mesmo anda levando. Não vale escrever vários capítulos de uma só vez: tem de ser on time. Ele quer que sua vida seja uma surpresa a cada dia. Portanto, os capítulos deverão ser deixados sobre sua cama a cada manhã. Fica bem claro que, se o escritor gostar de determinado capítulo, ou de certas passagens, ele pode deter-se e repeti-las quantas vezes quiser. Até à morte, se for o caso. Caso??? Não, ele não promete casamento. Quer dizer, isso vai depender... As interessadas devem enviar curriculum vitæ, pretensões salariais e sinopse do primeiro capítulo para o e-mail escritorcansadodalidaquerescritoraqueconduzaseudestino@oi.com.br

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Poetrix

Ponto de vista
Adoro Paixão,
Coração, Ilusão, Perdição...
e todos os problemas terminados em "ão".

Por motivo fútil
Poeta triste, desconsolado,
não se conforma, nem um bocado,
com o seu poema de amor roubado.
Clima de Paz
Depois do Equinócio vem o Solstício.
Briga de Estações é um Inferno.
Que tal um Armistício?

Indecisão
Feriado. Não chove. Não faz sol.
Pego um livro e vou pra cama ―
ou acesso a “pão-de-sol”?

Destroca
Destroco Jô e Mariana por Ana Maria;
Quem me ama por quem eu queria.
E mais nada eu trocaria.

Cisma
Cismo com letra econômica,
promessa astronômica
e paixão lacônica.

Latifúndio de Amor
O tamanho do meu chão...?
Fiz apenas um risco de giz
em volta do teu coração.

Circuito fechado
Neurônios desconectados.
Poetas desapaixonados.
Teclados desligados.
Mineirinho empacado
Fico ansim, aqui parado,
quereno tá no entra-e-sai.
Ma ocê não me convida, uai!

Eu sou um gato

Às vezes a gente acorda, levanta, recebe um “bom dia, tudo bem?”, responde que “sim, está tudo bem” e fica pensando: “está tudo bem mesmo, estou vivo?”. E seguimos, por força da necessidade, a rotina dos dias: caminhamos pelas ruas, sobrepostos a nós mesmos, autômatos dando bons dias e xingando, rindo e chorando, amando e desamando, trabalhando e espreguiçando, escrevendo e rabiscando, vivendo e morrendo...

É isso: não sou apenas um homem, estanque nessa morte-vida: ora estou vivo, ora morto. E surpreendo-me por vezes em estado duplo: vivo e morto simultaneamente. Essa dualidade exige uma resolução rápida, antes que eu me quede morto, somente.

Anuncia-se para breve a construção do computador quântico, com processadores qubits. Um qubit pode ser zero e um ao mesmo tempo, dois estados sobrepostos. É uma discussão antiga, “um gato de Schrödinger”. Em 1935, esse alemão, um dos criadores da física quântica, questionou se um gato ― grosso modo, um grupo de átomos ― poderia estar morto e vivo ao mesmo tempo. Nunca gostei de gatos e tanto se me dava se eles estavam vivos ou mortos. Era discussão para boi dormir, pensava eu até ontem.

Hoje, a sobreposição de estados me interessa ― não a física, mas a espiritual. Essa sobreposição não seria eterna, posto que é sensível a qualquer perturbação do meio. E como há perturbações no meio, e principalmente dentro de mim! Sobrepunha-me por pouco tempo, normalmente. Mas ultimamente ando questionando a física quântica. Tenho andado sobreposto há bastante tempo. E a questão nem é se estou vivo ou morto, mas se o amor morreu ou não em mim. Amarei novamente, estou amando ou jamais voltarei a amar? Essa dualidade amor-desamor me faz pensar seriamente: eu sou um gato (de Schrödinger)?

Meu processador cerebral é comum, e quando recebe a tarefa de procurar uma mulher numa lista, ele tem de ler nome por nome até achar aquela que me seria adequada. É um processo demorado, que levará anos, uma vez que a mulher ideal nunca é a primeira. E estarei morto quando ele acender a luz verde do “eureka”. Preciso que desenvolvam rapidamente esse computador mágico, capaz de fazer essa busca geral de uma vez só, numa única grande operação, usando a poderosa lógica da física. Eu sou um ilógico: só amo quem não deveria amar.

Dentro de um par de anos talvez ele esteja na minha mesa (até lá vou me virando, ora com uma Maria das Dores, ora com outra Maria Dolores). Daí sentar-me-ei à rede, numa manhã de domingo, farei um cadastro com todos os meus escritos e, ansioso como um adolescente, darei a ordem ao “Quantinho”: ache a mulher ideal para mim!

E devo deixar mesmo essa tarefa a cargo de um computador. Aos meus olhos e ao meu coração elas andam parecidas demais, como as chinesas ― cara de uma, focinho de outra.

domingo, 7 de setembro de 2008

Minha palavra em ti

Ah, se minha linguagem crua
fosse uma terceira pele a nos unir,
roçaria e esfregaria palavras
sobre tua página virgem e nua.

E se minhas toscas mãos
tivessem belas palavras,
ao invés de frágeis dedos,
sentirias minha nobre rima
a enlaçar-te a alma, sem medos.

Minhas palavras fremem de desejo,
e deixam de ser apenas algo subjetivo
para tornar-se fisicamente uma rede
a enrolar-se em teu corpo, sem pejo,
numa rede de doces promessas,
a manter-te presa a alma dentro da minha.

E te envolvo docemente em palavras,
acaricio-te, roço-te, com tesão,
e faço com que meus murmúrios
durem eternamente em teus ouvidos
durante nossa breve e eterna relação.