quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O melhor da festa

Diz um velho ditado italiano: o melhor da festa é esperar por ela, pois quem dá festa dela não aproveita.

O banho de hoje será especial. Cansado de andar pelas ruas cheias de gente, todo suado, passei na farmácia e comprei um Phebo, aquele com odor de rosas. Meu banho com essa especiaria é algo especial, transcendental, um ritual demorado ― esse sabonete me lava a alma. Por isso eu o uso apenas uma vez por mês.

Depois irei a Burarama, a um jantar familiar. E vou comer scorceta, que alguns chamam de cudiguin. Uma das especiarias italianas que mais adoro é scorceta; quanto mais eu como, mais quero comer. Mas eu a como uma ou duas vezes por ano, se tanto.

É um dia perfeito, seguido de uma noite também perfeita. Terei as coisas que mais gosto, e pelas quais espero pacientemente por semanas e meses. Mas não verei minha amada hoje. E é melhor assim. Existem coisas maravilhosas que só se deve fazer vez na vida, vez na morte.

As coisas que mais gosto, eu as quero assim: não todo dia, não toda hora. Pois há coisas nesse mundo que não podem ser banalizadas, sob pena de perderem o encanto. Então, as tenho vez por outra, por decisão própria. E cada vez que as tenho... ah! é festa em meu coração. Aquilo que queremos com mais ardor deve ser fortemente desejado, esperado como se espera pela jabuticaba madurando no pé, ou pelo filho à porta da escola em seu primeiro dia de aula, ou ainda pela resposta à carta de amor que enviamos. Tem-se que esperar com paciência, sabendo que se está esperando e sabendo pelo que se está esperando. Então, chegará o momento em que a espera vai acabar.

As pessoas que mais amo, também não as tenho sempre. Às vezes por minha culpa, outras vezes por culpa da vida, e outras mais pela indecisão de minha amada. E Ela não vem, ou eu não vou, por simples dubiedade, Dela e minha. Então, eu fico quietinho, esperando a hora certa. O melhor da festa não é esperar por ela?

A espera é um encantamento, quando se imagina tudo o que poderá acontecer durante a festa.
E enquanto este outono não derriça todas as folhas do mundo e o inverno não chega trazendo novas esperanças, enquanto o infinito não se torna finito, enquanto o amor não passa, enquanto persiste o frio d’alma, enquanto a vida me mantém prisioneiro, enquanto a Festa não vem, enquanto... enquanto isso, que fazer?

Boa coisa para se fazer enquanto se espera é comer. E pode-se comer de acordo com a pessoa que esperamos. Para cada pessoa, uma comida. Pois comidas e pessoas são assim: muito semelhantes entre si. Come-se arroz e feijão todo dia, e deles não se enjoa. Comidas sem muito gosto — e mesmo assim gostosas — são mesmo assim; mas as de gosto forte, de tempero carregado, como o gorgonzolla, essas não podemos comer todo dia, senão delas enjoamos.

E assim como são as comidas, são as pessoas.

Há pessoas com as quais convivemos pacificamente, sem nenhuma briga. São aquelas sem sal. Um “bom dia” está de bom tamanho. Há aquelas que engolimos forçadamente, e nos deixam um travo amargo. Mas nem tudo é trabalho, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo. No esporte também há aquelas que nos ajudam e as que tentam nos prejudicar. E há as que são como doce de leite: boas no início, mas enjoativas depois.

Mulheres e comidas, sabores diferentes a cada dia. Pois há aquelas que comemos todo santo dia. E temos de nos esforçar para descobrir um aroma, um tempero ou uma nuance diferente.

Mas não é assim com minha amada.

Ela é como uma scorceta. Vez ou outra, vou à festa, ao jantar para o qual me convida — e onde ela própria é o prato principal. Eu a saboreio assim, de vez em quando... e cada vez sinto mais sabor.

domingo, 5 de outubro de 2008

Palavras mudas

Dei de falar sozinho, agora. Falar, não digo; mas resmungar, sim. Resmungo a toda hora palavras ininteligíveis ― palavras mudas. Fiapos de sons, é o que emito. Nada mais. Minha voz trava na garganta; dali não passa ― há um dique: a palavra pensada bate nas cordas vocais e volta ― não se transforma em som. Eu falo para dentro, converso comigo mesmo.

Sento-me a uma mesa de barzinho, só, e começo minha ladainha. As pessoas me olham como se eu fosse um bêbado ― um ébrio diferente, criado pela Lei Seca. Alguns pensam que estou falando com eles, e me encaram. Depois percebem que sou apenas um louco, fazendo um discurso amoroso para platéia nenhuma.

Meu discursus amoroso não é dialético; ele gira como um calendário perpétuo, uma enciclopédia afetiva: é moto contínuo: alimenta-se de si mesmo. Quanto mais resmungo, mais palavras mudas me aparecem. Nenhuma lógica liga essas palavras nem determina sua contigüidade; elas vão e vêm ao sabor dos humores e amores, das cervejas ou licores: as figuras que as ilustram estão fora do sintagma, fora da narrativa, são Erínias; se agitam, se chocam, se acalmam, voltam, se afastam sem nenhuma ordem, como um vôo de mosquitos.

É como se eu estivesse numa mesa cheia de pessoas que trocam constantemente de lugar, numa eterna dança das cadeiras. Os mais diversos e insólitos personagens fazem parte dessa conferência fictícia. E todos me perguntam por Ela. É sina.

Ontem à noite, aconteceu no teatro. Mas acontece a toda hora, por onde quer que eu vá. Não sei mais quem sou, dissociado Dela. As pessoas não mais me reconhecem quando estou só. Ou parecem perceber que sou apenas o Marcelo pela metade. Falta-me algo.

“Cadê fulana?”, pergunta-me um menos conhecido. “E aquelazinha?”, indaga uma recém-conhecida, pretendente a não sei o quê. “Mas cadê ela!?”, censuram-me os amigos. Como se fôramos uma coisa só, eu e ela. Como se fôssemos uma arco-íris compondo uma só cor. Mas agora aquela luz única que éramos passou pelo prisma da separação e se decompôs em milhares de matizes. O azul ficou nos olhos dela; o amarelo, em meu sorriso; o roxo, nas marcas em minha carne; o cinza, em meu olhar; e o preto, em minha alma.

“Amigos e conhecidos, eu vos anuncio: eu, agora, sou só. Um homem só. A imagem Dela — à qual estava colado, da qual vivia — não existe mais: ora é uma catástrofe que parece afastar-me para sempre, ora é uma felicidade excessiva que me faz recuperá-la. De qualquer modo, separado ou dissolvido, sem Ela não sou reconhecido em lugar algum.”

(Esse sermão foi dito em voz baixa ― ninguém ouviu ―, mas o fato de estar abrindo e fechando a boca fez com que todos os olhares se virassem para mim).

Nunca fomos nada, mas passávamos essa impressão. Talvez fôssemos almas gêmeas e nunca tenhamos descoberto isso. Ou fomos mesmo almas que se cruzaram sem se reconhecerem, sem terem procurado um aprofundamento, um comprometimento para vidas futuras. Ou, talvez, nada mesmo. Ela se foi e me deixou assim, falando comigo mesmo, ou para o vento.

E converso com minha empregada, que me aparece em visagem, e eu xingo ― pois que, ontem, ela deixou um recado assim: “Seu Marcelo, espero que goste da faxina. Limpei toda sua mesa. Amanhã digo onde guardei os papéis”.

São essas coisas que me enfurecem e andam me deixando assim, brigando comigo mesmo.

Ouço um grito ― nova visagem ― e “converso aos berros”, com Júlio, sobre futebol. Ouço minha mãe atrás de mim dizendo: “Não beba mais, meu filho”. Não respondo. São muitos os fantasmas que me assombram numa mesa de bar.

Mas olho por cima dos ombros e vejo a moça mais linda do mundo. Ela me encara. Pena que não esteja na minha mesa.

Não sei de onde me vêm essas vozes. Talvez me apareçam porque eu esteja muito só. E já disse o Criador: “Não é bom que o homem seja só”. Mas como não ser só nesse mundo, onde cada um quer manter sua individualidade? Quem partilharia comigo uma vida de monge durante o dia, trabalho em escala de vinte e quatro horas duas vezes por semana, e a loucura das noites de folga?

Estou só. E mudo. Não respondo a e-mails amorosos, não correspondo a olhares furtivos. Alguém me liga, não atendo; ligo para alguém, não sou atendido. Estou mesmo fora-de-área. Ando só, mal acompanhado de mim mesmo.

Ando assim, meio tímido, falando comigo mesmo. Acho que a moça que está por trás dos meus ombros quer falar comigo. Mas, ba, que me custava...?

Olho para ela, resmungo alguma coisa, e acabo ficando só, com meus fantasmas.

Quem haveria de querer ouvir minhas palavras mudas...?

sábado, 4 de outubro de 2008

De salto alto

O homem inventou o salto alto para si, para ficar mais poderoso. Mas, desde que a mulher se apoderou desse fetiche, ela e o mundo não são mais os mesmos.


Há um julgamento rápido e rasteiro para aqueles que se acham, momentaneamente, num patamar acima do que realmente podem galgar: está de salto alto!

Esse ditado se aplica bem aos jogadores de futebol, aos políticos, aos atores. Mas nunca houve uma aplicação tão precisa e justa como às mulheres de hoje em dia: estão mesmo, todas elas, de salto alto!

O "salto alto", com conotação de se sentir poderoso, superior aos seus súditos, foi idéia de Luiz XIV e popularizado por Luiz XV. De lá pra cá o salto ganhou o mundo das mulheres, depois de ser abandonado pelos homens. Há décadas, homens usaram os "cavalos de aço"; persistem apenas as botas de vaqueiros. E aqui fica evidente o jogo traiçoeiro das mulheres: para que os homens abandonassem de vez o uso daquilo que pretendiam para si com exclusividade, passaram a taxar de efeminados aqueles que insistissem no uso de sapatos de salto alto.

O que era modismo veio para ficar. Tanto que elas já incorporaram os centímetros do salto à sua altura oficial. Veja lá na carteira de identidade: um metro e setenta para quem não mede um e meio. Elas não querem apenas estar à altura dos homens; querem estar mais altas, acima deles. Alguns homens pensam que são mais homens se forem mais altos que as mulheres e que os próprios semelhantes. Eu não preciso de nada disso. Do alto do meu metro e sessenta e pouquinho me sinto do tamanho exato.

Como todo adereço inserido no universo feminino, o salto alto gera controvérsia. Todos adoram a elegância, a sensualidade, a ginga que os saltos conferem ao andar das mulheres; mas há também os que detestam o poder que elas ganham ao subir num salto. E como nem todos sabem lidar com o poder, fogem delas; algumas, por seu lado, se tornam ditadoras, abusadas. Estas, mal aprendem a andar de "havaianas" e já querem montar na soberba de um salto. Ao caminharem, mais parecem um... um mondrongo!

Concordamos que elas merecem ficar num pedestal, mas as madames não podiam esperar que nós as colocássemos lá, não? A superioridade não está, necessariamente, apenas no querer ser superior; e, muito menos, num salto alto.

Eu, cá da minha altura, sempre encarei as altonas, as bitelonas. Não tenho complexos. Se estou com uma mulher dez ou quinze centímetros mais alta que eu, me acho o máximo. As outras me olham e imaginam: o que esse baixinho tem para estar com um mulherão desses? E me lançam olhares cobiçosos, querendo descobrir meu segredo. Aí eu me encolho mais ainda, só para dar uma valorizadinha.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Pequeno Tributo

Amanhã, enfim, vou comprar meu violão.

Das promessas que fiz no fim do ano, pelo menos essa eu vou cumprir. É um desejo antigo esse, o de tornar-me um virtuose ao violão. Um simples desejo egoísta de sentar-me sozinho na varanda à tarde e dedilhar bossa nova, ao lado da mesa farta de queijos e vinhos.

Pois amanhã cedo, bem cedinho, antes que a empregada me faça o café, saio apressado, entro numa loja de instrumentos musicais e escolho o meu violão. Não há de ser qualquer um. Deverá ter muita sonoridade – a de um sabiá-laranjeira.

Essa é outra promessa que fiz: a de ter um sabiá na minha sala. Acho difícil cumpri-la, pois não sou de prender nenhuma alma sob meu jugo. Mas promessas são feitas para serem cumpridas.

Então, sentar-me-ia na varanda, a mesa posta com vinhos e queijos, violão no colo, a gaiola dependurada. E começaria a sinfonia: um chilro lá, uma dedilhada aqui. E, aos poucos, de ensaio em ensaio, eu e o sabiá-laranjeira encantaríamos a rua e o bairro com nossa sinfonia harmoniosa. Bossa nova, boleros, MPB, sambas sincopados encheriam o ar de puro êxtase ― em tudo isso formaríamos um par, eu e ela.

Isso tudo me veio à mente ontem à noite. Há quatro meses ouço falar de certa voz, mas só ontem tive o privilégio de ouvi-la. E encantei-me. Depois de anos emudecida, minha alma musical despertou, e me peguei cantando baixinho e dedilhando um violão fictício.

Mas não nasci para ser violonista. Nunca o serei. E meu sonho se desfaz.

Ah, Amélia, que vontade de te roubar e te colocar na minha estante, sobre uma caixinha de música, à minha disposição. E dispensaria até meu violão, pois tua voz me basta.

* Com meus agradecimentos à inspirada Milena Paixão.