sábado, 31 de janeiro de 2009

Ressaca de verão

A volta das férias é sempre penosa; mas logo vem o pensamento de que no próximo ano o dinheiro vai sobrar. E como esperança é o que move os pobres de espírito e de grana...


Chego a casa ainda com um gosto salgado na boca. E areia nos fundilhos. Acabou-se o janeiro, acabou-se o dinheiro e ainda tenho pela frente todo o mês de fevereiro. Ainda por cima, em Cachoeiro. Eu não mereço, parceiro!

A casa está uma bagunça, e ainda ficou o aluguel, o condomínio, a luz, o telefone, a água, tudo por pagar. O dinheiro dessas coisas, torrei tudo em cerveja e peroás. O cheque especial está no vermelho, estourou o cartão de crédito. O telefone foi cortado, a despensa está vazia. Futuco até o fundo, mas só encontro um pacote de café solúvel vencido. Encontro uma singela cobrança, enviada pelo dono da padaria com a esperança daqueles que apostam na loteria: "Sr. Marcelo, por favor, me ajude e pague essa conta de dezembro. Esse mês eu não vendi nada, todo mundo foi pra praia!". Pois eu também, seu Manuel, eu também...

Na geladeira, nenhuma cerveja. E o governo ainda me enfiou milhares de contas pela soleira da porta. É IPVA, IPTU, IPQP, tudo vencido e a caminho da dívida ativa. A prefeitura me cobra com juros a maior, mas não me paga nem sem eles. Dá vontade de mandar todo mundo praquele lugar. Inclusive o colégio da filha, que tenho de pagar sem ela ter estudado. Há um monte de roupas para lavar, livros por começar, revisar, terminar, publicar. Ou me livro desses livros, ou eles acabam comigo. E crônicas por escrever. Milhares delas, que ainda não passam de idéias. Por email, Ilauro me cobra matéria para o www.atenasnoticias.com.br; encaminho outro ao Higner, cobrando crônica para a Cachoeiro Cult. Ao telefone, digo a Bozó que mês que vem acerto uma pendência da Revista de Burarama. A Academia de Letras avisa: "semana que vem haverá reunião"; e eu lembro que tenho de retomar a musculação na academia de ginástica. O carro está uma bagunça; a descarga, estourada; a moto, toda esculhambada; e os tanques, vazios. Os dois!
Bem avisava minha avó: dia de muito, véspera de pouco! Gastei tudo o que não podia em janeiro e agora devo até o salário de março.

Depois dessa ressaca, eu prometo, eu juro que vou prometer: nunca mais vou à praia! Mas a pele está tostadinha, com aquela cor que a diaba gosta; o coração, desoprimido; o espírito, descansado; e os olhos... Ah!, os olhos estão encantados. Que importam a barriguinha um pouco maior e o bolso vazio? Quem sabe esse ano eu não me programo melhor, começo a juntar um dinheirinho todo mês, ali por julho ou agosto, e garanto um verão mais tranqüilo no ano que vem? Faço um cofrinho, jogo ali umas dez moedinhas por dia e tenho minha cerveja garantida. Quem sabe até alugo uma casa à beira-mar, com varanda...?

Por falar nisso, será que me sobrou algum para tomar a saideira, a derradeira desse verão? Mas nem uma pataca! Decido ir ao bar do Carlo, que lá ainda tenho crédito, e desafogar essas mágoas que ficam por ser pobre e ter de fazer tantas contas ao final do verão. Lá eu vou encontrar o fulano, o sicrano, o beltrano... Não, esse não! que lhe devo algumas pilas, tomadas emprestadas ontem à noite em Marataízes. Acho melhor ficar em casa mesmo, ouvir Chico e me consolar pensando que, afinal, o próximo mês é pequeno. Que venha depressa, que chegue logo o carnaval. Também sou filho do diabo.

E depois da terceira cachacinha me quedo pensando que minha vida não é tão ruim assim. Pude, afinal, durante um mês inteiro, espraiar o corpo e o espírito. Há muitos que sonham com isso e não podem gozar das delícias do dolce far niente, ficar de pernas para o ar. Os churrascos, as moquecas, as caminhadas matinais pela areia, os jogos de buraco, os bate-papos ao lusco-fusco e que se estendem até o plenilúnio, a música nos barzinhos, o sono na rede, o banho de mar à noite, as madrugadas de amor nas pedras, as peladas na praia... Ah, aquelas peladas e as quase-peladas são inesquecíveis! Principalmente as mineirinhas. Se eu ficar revivendo essas boas lembranças do verão, isso talvez me diminua o sofrimento de voltar à vida costumeira de trabalhar e contar tostões. Dinheiro não é tudo na vida, e eu já devia estar acostumado com a falta dele. Amanhã me levanto lá pelas onze, arrumo a casa, vou ao banco, ajeito um empréstimo, pago todas as contas, abasteço a moto e tomo o rumo de Burarama, pois lá eu sou amigo do rei e minha mãe cuida de mim.

Amanhã? Putz Grillo! Amanhã é fevereiro e eu tenho de trabalhar!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O sexto dedo da mão

"Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o Vosso Pai que está no céu". O ser humano é perfeito, em princípio. Mas, às vezes, o julgamento moral sobre os semelhantes se baseia apenas em alguma falha física que apresentam.

A Bíblia nos mostra que a paixão e a morte de Cristo são exemplos do que a pressa e o pré-julgamento podem fazer. E mais, que as penas devem estar de acordo com os crimes praticados. Lato sensu é assim que penso.

O Direito Penal reza que não se pode julgar sem provas, nem condenar sem o devido processo legal. Provas, nesse caso, significam papel; e, condenar, levar à prisão. "Allegatio et non probatio quase non allegatio", diz o Direito; ou seja, alegação sem prova é como se não houvesse alegação. É nisso que se baseiam os políticos, quando pegos com a "boca na botija". São apenas perseguições políticas, choramingam; não há provas, confiam. E o povo só observa.

O bom senso do povo sabe que para muitas coisas dessa vida não são necessárias as provas. Há muitos delitos que não são caso de prisão nem precisam seguir o incômodo, o rigor e a morosidade de um inquérito etc e etc. Arrolar testemunhas é constrangedor. Então, para as besteiras que cometemos no dia-a-dia, aplica-se o rito sumário: não passou na prova, é burro; perdeu, não sabe jogar; caiu, é mole; chorou, é mulherzinha; traiu, adeus. Acaso é preciso provar que uma pessoa ama ou deixou de amar? Basta saber, basta o sentimento.

É preciso provar que um político anda enriquecendo ilicitamente? Não, basta desconfiar. E o tempo de observação e o número de observadores são bastante grandes, o que evita injustiças com nossos nobres representantes. O julgamento do povo, nesse caso, não leva ninguém à prisão, mas deixa marcas indeléveis.

Quanto mais vivido o ser humano, mais lhe crescem os olhos para cobiçar, as mãos para afanar e as pernas para se safar. Esse desejo de fugir à responsabilidade é inerente ao homem, e vem do berço. Desde pequenos já sabemos nos virar para nos livrarmos da imputação de algum delito, por menor que ele seja. Quem nunca se esquivou de confessar que quebrou um copo, escondeu chicletes sob a tampa da mesa ou sujou uma parede?

Pois foi o que se deu com a então recém-pintada igreja de Burarama, que custou uma saca de café a muitos cafeicultores e muitas moedas aos pobres. Mesmo depois de tanto sacrifício, a Casa de Deus amanheceu com algumas marcas de mão, feitas a barro, sobre sua alva pintura recém-feita.

Desconfiou-se do Elieser – desconfiou-se, não; teve-se a certeza –, um menino bom que só ele, mas arteiro como nenhum outro. Elieser era desses moleques queridos por todos. Pobrinho e "pidão", mas muito prestativo, ninguém lhe negava nada em Burarama. O motivo de tanta complacência e querência – e até piedade – era uma verruga avantajada na mão esquerda, que mais lhe parecia um sexto dedo.

Questionado, o molecote naturalmente indignou-se. "Tem ‘pova’, é? Tem ‘pova’, é?", repetia, sem parar, o pretenso injustiçado, com seu jeito de menino carente. "‘Pova’ que fui eu!", desafiava com seu jeito adulto, como que exigindo um papel, uma testemunha ocular, uma foto, a prova cabal e irrefutável de seu crime. O "foi, não foi" prolongou-se por um bom tempo, a praça encheu-se de gente, mas ninguém se deu ao trabalho de ir ao cartório ou a delegacia atrás de provas. Não era preciso. Nem o benefício da dúvida cabia ao pobre réu. Afinal, todos tinham visto as marcas de barro na parede. E todas elas tinham um "sexto" dedo impresso.

"...e se tua mão direita te é motivo de vergonha, corta-a e lança-a longe de ti!", ecoou a voz de uma devota, um tom acima do murmúrio coletivo. A multidão fez cara de espanto, de nojo e de pena. Cortar a mão de Elieser? A mão toda, por um simples pecadilho? E o problema dele era na esquerda. Foi preciso um longo tempo de discussão para se chegar a termo, após a devida explicação da intenção inicial da santa devota ao evocar as palavras das Sagradas Escrituras.

Fosse no Irã e dedo a mais de Elieser teria sido cortado em público; no Japão, a Yakuza o teria cortado em sessão secreta. Mas em Burarama a comunidade é descendente de italianos e – como a Cosa Nostra não é mais a mesma e nós viemos do Vêneto, e não da Sicília – resolveu extirpar o mal pela raiz apenas agendando uma operação médica para livrar Elieser do seu sexto dedo, do apêndice dedurador. Afinal, por que execrar um menino tão bom, destinado a nunca ser político?

Ecco! Muitos homens exigem que se apresentem provas de seus malfeitos. Os políticos – sempre eles como exemplo! –, quando pegos em falta, querem provas de papel. Provas? Para quê? Não sabem eles que o mundo inteiro está de olho em suas "mãos-grandes", no sexto dedo que eles trazem escondido... ou no quinto dedo que alguns não têm.

Observe você também se não há um sexto dedo na sua mão. Eu, particularmente, penso que esse sexto dedo invisível estaria na minha mão esquerda, onde as mulheres o procuram – e não o encontram – para colocar uma aliança.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Desejos (IV)

Quando eu for poliglota, um linguista, quero criar uma língua diferente, que seja de uso exclusivo dos amantes. Uma língua que enterneça, acalme, explique, desatine e enlouqueça. Hei de misturar o charme francês, a veemência italiana, a essência analítica inglesa, a natureza aglutinativa alemã, a imortalidade hebraica, a simplicidade latina e a suavidade espanhola. Tudo isso juntarei à doçura do nosso português. Mas o que eu quero mesmo é te convidar pra ir lá em casa qualquer hora tomar um vinho e ficar noite inteira conversando comigo nessa babel amorosa. Por que essa nova língua... ah, eu vou ensiná-la somente a ti!

Classificados VI

Editor-escritor procura secretária

Editor antigo, que aprendeu em cartilhas ainda mais antigas, que sobreviveu a diversas reformas ortográficas, decepcionado e embaralhado com o novo “desacordo”, procura secretária que saiba escrever sem acentos, tremas ou hífens.

As candidatas devem ter mãos finas (para escrever melhor), boca grande (para falar melhor) e olhos imensos (para enxergar os erros).

O escritor, na verdade, cansado de extremos, assuntos agudos e afins, procura “learning specialist” tranquila (de textos de boa lavra, de falas de boa palavra e de olhar que não seja mofatra) para traduzir seus escritos, pois pensa em publicar, doravante, somente em inglês (isn’t it true?). Ou em italiano (non è vero?).

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Desejos (III)

Quando eu olhar de novo em teus olhos um tanto acastanhados, tirante a escuros, quero perder a vergonha, o medo de neles me perder. Não vou disfarçar, olhar em falsete. Quero é encará-los, até que tu os desvies. Porque teus olhos não me metem mais medo. Nada me resta dos pesadelos de criança e do medo do escuro, pois é no escuro dos teus olhos que eu me vejo, despindo-me dos segredos e reinventando sonhos.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Desejos (II)

Quando eu estiver de novo lá em casa, quero pedir a minha mãe para revirar as coisas velhas de meu pai. E quero que ela me dê o sorriso que era só dele, a espirituosidade, a simplicidade e o jeito pouco de falar, mas muito dizer. Mas o que eu quero mesmo é aquela letra bonita, desenhada com tanto vagar e tanta concentração e tanto gosto que parecia que ele estava era pensando se devemos gastar esse tesouro tão precioso assim à-toa, com bobagens.

Rondas & Campanas

A mineirinha bonita, em trajes leves, parou a máquina super possante em frente ao posto, desceu do carro toda charmosa, feliz e poderosa e perguntou, apontando a rodovia à sua frente:

— Seu moço, se eu seguir reto... eu vou dar em Guarapari?

À primeira parte da pergunta, o policial respondeu:

— Reto, não, senhorita, porque estrada é cheia de curvas.

Quanto à segunda parte, o policial preferiu o silêncio, porque não achou decente dizer o que passava pela sua mente.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Desejos (I)

Quando eu ficar velhinho, quero ficar gordinho, bem cheinho, de barriga grande e saliente. De tanto comer letras. Não; de barriga, não, que eu como letras é com os olhos — não com a boca, como fazem os mineiros. Então, vou querer é ficar empapuçado, com bastantes pregas de gordura em volta dos olhos. Para que todos possam ver como tuas letras me alimentam!