quarta-feira, 30 de julho de 2008

Casquinha de diamante

O brilho que existe nos dentes de uma mulher será apenas uma casquinha de diamante – ou pode ser sua alma querendo escapar pela boca?


Ela acabou de almoçar e parece incomodada. Cruza os talheres sobre o prato, uma perna sobre a outra, passa delicadamente o guardanapo sobre a boca, um lábio sobre o outro, faz um muxoxo, como se ajeitasse o batom, e dá uma "chupadinha" nos dentes. O barulhinho é bonito. Olha em volta, desconfiada de que alguém reparou – e dá de olho comigo. Aquele olhar é como um beliscão em minha alma adormecida, nesse meu coração desavisado. O rosto é muito sério, mas os olhos sorriem. Faço sorriso amarelo, como que pedindo desculpas por ter visto aquele gesto "inconveniente". Ela sustenta o olhar e sorri para mim. Não está envergonhada.

Há muito reparo nessa menina-moça, que se senta sempre sozinha a uma mesa do canto, séria, concentrada em ler e rabiscar papéis. Está sempre só. Não olha para ninguém. O celular toca e ela nem se digna a pegá-lo. Os óculos escuros ficam sobre a cabeça, dando aspecto imponente, distante, superior. Os óculos de grau não param quietos: será mania? Come sem olhar para a comida, os olhos fitos num monte de folhas rabiscadas. Mais rabisca que petisca. A toda hora coloca e retira folhas coloridas de uma pasta enorme, cheia de divisões. Lança olhares de carinho ao notebook, e de vez em quando toca-lhe uma tecla, como numa suave carícia. Sua mesa parece um escritório, mas ela não me parece ser advogada. Pela bagunça, será uma escritora, uma poetisa? Nunca tive coragem de chegar perto e abordá-la, nem ela jamais se dignou estender-me seu olhar – é minha chance de justificar esse e ganhar outros.

Será que ela desconfia que eu moro do outro lado da cidade, e que deixo a comidinha de minha mãe só para poder vir aqui vê-la?

De segunda a sexta, pontualmente ao meio-dia, ela entra no Belas Artes e sai meia hora depois. Eu a acom-panho de longe até a altura do Mourad’s, quando ela atravessa a praça e sobe pela Rui Barbosa. E eu fico ali, pensando em quando irei convidá-la para um cafezinho. Ah, se pelo menos ela me desse uma deixa...

Ela descruza as esculturas, levanta-se com elegância e caminha em minha direção. Eu tremo. Quando penso em me agachar e sumir, ela toma a iniciativa. Próxima à minha mesa, joga cabeça e tronco à frente, agacha-se levemente em minha direção, abre a boca e sorri abertamente – um sorriso iluminado, brilhante –, mostrando-me seus dentes perfeitos, faiscantes. Quer saber se ficou alguma casquinha de feijão entre eles. Digo, meio sem jeito, que assim-assim não dá para ver direito. Só chegando mais perto.

Ela chega. A boca assim tão perto me desconcerta. Preciso achar uma casquinha que seja. E ela se achegando assim, como se fosse minha velha conhecida; ou melhor, uma amiga querida; ou, melhor ainda, minha namorada; ou...

Ela aproxima seu rosto do meu, sua boca da minha, e me mostra os dentes. Que dentes! Olho bem, perscruto seu rosto, seus olhinhos miúdos, seus lábios, sua língua, demoradamente (Deus!, preciso me controlar!). Examino minuciosamente: tudo perfeito e harmonioso. O sorriso aumenta a cada segundo. Mas, nos dentes, nada. Não vejo casquinha de feijão nenhuma; nem um restinho de alface nem nada. Também não vejo fiapos de manga ou de laranja. Digo que preciso reparar mais – agora, já menos nervoso.

Se eu acho alguma casquinha, será que ela me pede para tirá-la? E de que maneira? Com os dedos, com a boca? Meus Deus! apareça, casquinha!

O que será que ela come?

Acho que já está desconfiada de minha demora. Quando começa a fechar o sorriso – que se tornou matreiro –, satisfeita pelo resultado negativo, eu me desespero e quase grito: "Espere!". Temo pelo vexame. Ela abre mais os olhos, a boca, agora de surpresa pela minha atitude. Suspeita de minha inquietude, mas deixa prosseguir o exame.

Há um brilho não identificado naquele sorriso. Será a pontinha de sua alma querendo escapar pela boca e encontrar-se e casar-se para sempre com sua alma-gêmea – exatamente a minha?
Coloco, então, meus óculos (agora, sim!) e concentro-me com todas as forças, relevando meus desejos, esquecendo aquela boca, mas pensando nos seus beijos, e, no seu incisivo lateral direito, quase tocando o frontal, eu vejo a casquinha incrustada, brilhante, soltando milhões de fagulhas contra a luz dos meus olhos faiscantes.

Não é possível! Mas, será...?

Será que essa moça almoça diamantes?

O nosso avesso

Eu sou o teu reverso
A rima antes do teu verso
O original sobre teu rabisco
O olho dentro do teu cisco

Sou a letra depois da frase
O pronome depois da crase
A métrica gerando o soneto
A carne furando o espeto

És o papel sobre minha letra
O traço branco na linha preta
O descaso sobre meu desvelo
O fogo derretendo meu gelo

Eu sou o teu contrário
Tua roupa fora do armário
O sol brilhando em tua noite
O coração lacerando teu açoite

Sou o banco sob a praça
O copo dentro da cachaça
A ponta no meio do novelo
A carta sobreposta ao selo

Tu és o meu inverso
O mar em meu corpo imerso
O tombo antes do tropeço
A cesta antes do arremesso

Sou tua volta antes da viagem
Teu medo depois da coragem
O bonsai que se agiganta
O abismo que te encanta

Nós somos o avesso
O fim antes do começo
A terra cobrindo a planta
O corpo aquecendo a manta

Às vezes uma só imagem
Doutras apenas miragem
Somos o tudo e o nada
A curva depois da estrada...

E vamos assim rabiscando
Revisando e escrevendo
Sem saber qual é o fim
Dois avessos se revezando
Eu, dentro de ti vivendo
E tu, habitando em mim

sábado, 26 de julho de 2008

Quando sopra o minuano

Quando sopra o minuano, é bom que se esteja com o coração leve, junto à pessoa amada. Porque, se ao vento frio e à chuva fina se junta a saudade...


– Que calor, hein!?

– Pois é. E esse fim de semana que não chega...

Falamos do que fizemos nos últimos anos e ele se surpreende:

– Você esteve no sul e quis voltar pr’esse inferno?

– É que não suporto frio.

– Mas não havia uma guria que fosse, para te esquentar?

– As gurias, o povo é tão frio quanto o clima. Aqui é mil vezes melhor.

– Pois eu queria morar lá.

Não queira, meu amigo, não queira. Aquele frio é bom para turista, para se passar um final de semana em Gramado ou Canela com uma namorada nova; mas vá viver lá, especialmente no mês de julho, quando o minuano é mais perverso...

Esse vento tão famoso, que causa medo em quem não o conhece, e pavor em quem já o sentiu, é o vento polar, frio e seco, que chega pelos pampas, sobe o planalto médio, desliza pelos aparados da serra e despenca no mar. No seu trajeto não causa nenhum dano material, a não ser esvaziar as cidades. É até bonito vê-lo balançando o trigal.

No homem, especialmente em mim, o efeito era devastador: endurecia e fazia rusgas nas pontas dos dedos, expondo o tecido epitelial entre cutículas e unhas; ardia o nariz; e gelava o ar dentro do peito.

E quando a gente não o sente na pele, nem o vê varrendo ruas, ele se anuncia nos prédios, nos fios de energia, nas frestas das portas e janelas, num misto de assovio e gritos de pavor. Parece que traz consigo fantasmas de um passado longínquo, das sangrentas e até hoje mal resolvidas lutas entre chimangos e maragatos.

Pior que o minuano, em si, é quando ele vem acompanhado de chuva fina, que corta o coração feito faca cega. É o temido mês de julho.

Saindo pelas manhãs, pés molhados e cabeça baixa, eu me defendia apertando o passo nas esquinas em que ele soprava encanado. E voltava correndo, à procura da lareira, do pala de lã grossa, do mate amargo e do vinho. Não havia voz amiga nem braços calorosos a me esperar. E isso gela o coração mais empedernido pelas lidas que já possa ter existido.

"E esse frio todo, não serve pra nada?", quis saber meu amigo, já meio desanimado.

Sei lá. Serve para peras, uvas, maçãs e ovelhas. E serve para o turista. Para um buraramense friorento, não serviu para nada. Minto. Eu descobri nele algumas pequenas utilidades: podia ir à despensa e pegar a cerveja gelada na caixa; deixar a jarra d’água em cima da mesa e a geladeira, sempre fechada; ou podia abrir a geladeira, quando estava muito frio, e sentir o ar quentinho que ela exalava – e pensar no calorzinho gostoso de Cachoeiro.

Quando a saudade apertava demais, restava-me tomar de meu Pingo (foi como batizei meu carro) e desafiar o minuano, galopando velozmente por aqueles Campos de Cima da Serra, som alto, vidro aberto, vento gelado na cara...

Quando sopra o minuano, é bom que se esteja com o coração leve, junto à pessoa amada. Porque, se ao vento frio e à chuva fina se junta a saudade...

terça-feira, 22 de julho de 2008

Alma rara

Maria deve ser
uma alma antiga,
daquelas bem antigas.
Das primeiras, talvez.
Quem sabe,
contemporânea
de Adão e Eva,
e da serpente.

Só assim se explica
seu riso e sua bondade.

Deve ter morrido
em muitos corpos
e reencarnado
umas quantas vezes,
em outros tantos corpos,
replicada, multiplicada,
e, em cada uma
dessas mortes-vidas,
se refeito, se apurado,
se aperfeiçoado tanto,
mas tanto, tanto,
que agora atingiu o limite:
a perfeição dos anjos.

Maria não precisa mais morrer.


Aetaeneeerre aerreaep

domingo, 20 de julho de 2008

O instante mágico de cada um


Há um momento na vida de algumas pessoas que tem o poder de redimir todos os sofrimentos. Há um momento em nossas vidas que parece dizer: você não nasceu em vão.

Todo ser humano deveria ter direito ao seu momento mágico na vida. Não me refiro aos depreciativos quinze minutos de fama na telinha da Globo, que parecem ser caçados a peso de ouro, mas àquele momento único, que marca para sempre a vida de um vivente. Esse momento pode acontecer em família, no meio da noite, num barzinho, ou num sambódromo, em pleno carnaval.

Atletas deficientes visuais que desfilaram pela Portela mostraram em suas faces o que é esse momento mágico. O semblante é indisfarçável e mostra em toda plenitude o que vai dentro da alma: êxtase puro. O momento deles não foi aparecer na televisão – isso foi apenas conseqüência –, mas desfilar. Não sabiam a música e nada viam do feérico desfile. Isso não importou. O êxtase não estava na avenida, mas dentro deles.

Esse instante de gozo interior, íntimo, que não precisa necessariamente ser dividido com alguém, é a certeza da superação, quando descobrimos ser capazes de fazer algo que julgávamos impossível. Deve ser inesperado como o pulo do leão sobre sua presa e explodir com a força de um vulcão. Ele tem de nos pegar de surpresa, trazer calor à alma, esperança no futuro, a certeza de que não viemos a esse mundo por acaso. É algo que nos fará ouvir os anjos tocando sinos, os deuses sorrindo e os humanos cochichando entre si, num tom suficiente para ouvirmos: "que bom, você existe!".

Eu nunca tive um momento assim, que transcendesse minha obscura existência, me modificasse da água para o vinho. Talvez o fato que tenha chegado mais perto tenha sido passar no vestibular, sem ter feito cursinho, e ter chegado a casa e poder dar a notícia aos meus pais. A alegria que eles sentiram encheu-me de paz pelo dever cumprido. Mas, no fundo, acho que já sabiam que eu passaria. Então, não é isso o momento mágico.

O que eu sonho é um tipo de encantamento que a maioria dos humanos nunca provará. A poucos será dado conhecer esse êxtase. A humanidade, porém, é grande e não sabemos quem são esses poucos predestinados. Pode ser você, posso ser eu. Pode acontecer daqui a anos, ou amanhã cedo. Pode estar acontecendo agora. Eu sei que o meu vai acontecer. E cada um tem seu momento particular: quem sabe ganhar na loteria, talvez ser campeão mundial, ou mesmo participar do big brother. Não almejo nada disso.

Meu desejo é mais prosaico, e nem mesmo é exclusivo. Parece que anda acontecendo por todos os lados, para todas as pessoas, o tempo todo. Pelo menos, à primeira vista. Eu sei bem que, depois, esse momento mágico que todos dizem ter experimentado se transforma em pesadelo.

É só um desejo banal, esse meu, mas tão ansiosa e ardentemente esperado que anda consumindo meus dias e me faz, às vezes, duvidar se estou entre aquela ínfima parcela da humanidade predestinada a ver a luz antes de morrer.

Esse momento maior de minha existência, que me elevaria um patamar aos olhos de todos e aos meus próprios, seria bater o olhar em alguém e saber: é essa! É para essa que eu nasci! E, momento dobrado, sentir o olhar dela a me devolver: eu também nasci para você!

Mas como sou escritor e entendo de letras, não de olhares, acho que esse momento mágico pode estar a me acontecer. Estranhamente, inesperadamente. O ataque do leão. O vulcão. O ladrão no meio da noite, roubando minha paz enquanto durmo. Poderia um escritor apaixonar-se por letras, por frases, por meros rabiscos num pedaço de papel? Pois há alguém escrevendo umas letrinhas por aí que me fizeram começar a dizer, antes que eu percebesse a loucura e me calasse: é essa! É pra essa...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O gosto da rosa


Foi quando provei da rosa
— uma pétala rubra e saborosa —
que me olhaste assim, de lado,
com olhar de encantamento
e sorriso doce, admirado.

Pude ler teu pensamento,
ver tua cara de estranheza.

Tirei da flor uma pétala,
e quando te disse “Tome!”,
sorriste que é uma beleza!
— Muito obrigada, seu moço,
mas rosa não se come!

E eu quis te provar
que flor também é almoço,
quando é de amor a fome.
Por gostar do teu sorriso,
eu, galante e todo prosa,
perguntei pelo teu nome.
E respondeste, sorrindo:
— Me chamo apenas Rosa.

Nem precisavas, meu amor,
ter cheiro ou nome de flor.
Podias ser só Ana ou Maria,
que mesmo assim, de ti,
cada pétala eu provaria,
e em cada uma sentiria,
nos meus, o gosto dos teus
lábios cor-de-rosa.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O Bonsai


Um bonsai é uma árvore que não cresceu, por sofrer mil podas. Mas pode ser também um homem e seu coração, impedidos de amar.


Há quem goste de laranjeiras, ou de pitangueiras. Eu prefiro jabuticabeiras – pelo estalo da casca sob nossos dedos, pelo barulho da fruta negra ao pocar na boca; ou, talvez, pela semelhança da frutinha com os olhos da minha amada – miúdos feito jabuticaba de bonsai.

Por muito tempo fiquei querendo um pé de fruta no meu quarto, sobre minha escrivaninha, para que eu pudesse apreciar a natureza enquanto me mato de escrever. Outro dia comprei um bonsai, jabuticabeira miúda. Sonho realizado. Ele está cheio de frutinhas, e vou poder ver os olhinhos dela toda hora.

Jabuticabeira é planta que dá bagas suculentas, que devem ser chupadas no pé. É ali que colho as "bitelonas" – e as miudinhas, como os olhinhos dela –, trepado num galho, agarrado ao tronco como se fora um deles. De umas vezes engulo o caroço; doutras, não – porque não sou dado a estar engolindo "caroços".

Estirado na rede, enquanto sorvo um licor de jabuticaba, matuto sobre o porquê de ter escolhido um bonsai de jabucatibeira. Tirando os olhinhos, talvez porque o fruto é frágil, mas a árvore é justamente o contrário – sua robustez impressiona. Ao contrário sou eu, e os frutos do meu amor.

No senso comum, bonsai é uma miniatura de uma árvore. E por isso exerce uma atração física, visual, curiosa, mística. Essa atração, porém, não está na miniaturização, mas em sua imensidão. É possível que o mundo inteiro caiba num bonsai – ou uma vida toda. Ou duas vidas: a minha e a Dela. Assim também é a atração que exerço: sou miniatura, mas todos sabem da imensidão do meu amor.

Dou um bonsai à minha amada, porque ela disse que gosta de plantas, desde que não dêem trabalho. Um bonsai não dá. Ele precisa apenas de carinho, já que não é somente uma planta, mas a personificação do espírito da paciência, da dedicação, da criatividade, da proximidade, do aprendizado, da transformação, da paz interior, da idealização, da transcendência da vida… Bonsai não é apenas uma árvore, mas o Ser; não apenas a criatura, mas o seu criador, seu provedor. O bonsai e seu dono são uma coisa só.

Na minha definição crono-poética particular, um Bonsai é uma forma de encolhimento da árvore – não apenas algo que não cresceu, mas que foi impedido de se expandir. Pois também não sou um bonsai? Eis que, impedido de amar, ando encolhendo minh’alma. Em verdade, ando me encolhendo todo. Eu e meu coração às vezes ficamos pequenininhos feito jabuticaba de bonsai – basta que vejamos um velhinho pedindo esmolas pelas ruas, ou que vejamos nossa amada.

(E até quando deve um homem se encolher por não poder amar?).

Mas encolhimento é uma coisa, transformar-se em bonsai é outra. Para ser um bonsai eu deveria ser isso e mais aquilo, esperar décadas e mais décadas de podas e mais podas. Hum...! Não sou homem de décadas nem de ser podado. O processo de mutação de homem para bonsai é demorado demais para mim. Mas, se começo agora essa transformação, será que ela me aceita, num futuro não muito longínquo?

Não sei como me sairei nessa empreitada, mas aceito que, se por acaso, ao invés de "bom-sai" eu for um "mau-sai", ela pode me podar, cortar minhas raízes e me deixar sem água e sem carinho.
Bah!, que me importam essas balelas, se meu coração se transforma subitamente num bonsai tão logo a vê, quem sabe se para que ela se anime a cuidar dele...?

Lembro, porém, que um bonsai, de acordo com a milenar sabedoria chinesa, nunca ficará pronto. Há que se cuidar eternamente dele.

Almorragia


Tenho, às vezes, uma fantasia:
uma hemorragia doce e suave,
vinho de minha própria cave,
avinagrado, que não emanaria
de nenhum ponto específico
de minha carne feita acrílico,
uma demorada consumação,
calculada na exata dimensão
para que eu possa dessofrer
antes de minh’alma esvaecer.

Resignadamente, eu a sinto:
bem lentamente, tudo me foge
sem que eu nada queira reter;
só o amor escapa a galope,
escorrendo para o infinito:
matéria escura vagando silente,
dor destilada sem nenhum grito.

Inflado como um deus grego,
esvazio-me total e eternamente:
sou o revés de um buraco negro.

Essa fantasia-verdade é meu porto,
que me agita, explode e me acalma.
As pessoas, todas elas, normalmente,
têm hemorragia sangrando o corpo.

Eu tenho hemorragia na alma...

Sabedoria Humana


O conhecimento humano se faz de geração em geração. Ninguém pode saber tudo no decorrer de uma vida. A sabedoria humana não é de um só, mas da humanidade.

Minha filha sempre me pede para fazer coisas simples em casa, como trocar a resistência do chuveiro, fazer a torneira parar de pingar... Sempre digo que não sei. E toda vez ela se irrita:
“Pôxa, pai, você também não sabe nada!”.

São os ecos da minha infância, que se repetem sempre. Vez por outra alguém gritava comigo, quando eu tinha má vontade em fazer as coisas: “Você não serve pra nada!”.

Meu pai, ao contrário, fazia de tudo. Meu avô, mais ainda. Eu cresci e não sei se por trauma, pirraça ou má vontade... a verdade é que não sei fazer quase nada dos afazeres domésticos normalmente reservados para os homens no final de semana.

Hei de servir para alguma coisa. Mas o quê?

Eu sei escrever. Quer dizer, acho que sei. É o que gosto de fazer, pela manhã, à tarde e à noite. Até durante o sono eu rabisco alguma coisa. Será que só sirvo para isso: escrever? E ser escritor significa que sei de alguma coisa? Muitas pessoas, ao me conhe-cer, fazem cara de espanto e admiração. Acho que eles pensam que sou uma enciclopédia ambulante, que sei de tudo nesta vida.

Quem me dera! Lembro-me de quando era pequeno. Eu era metido a saber mais do que os outros. Para tudo eu tinha uma resposta. E, por isso, durante bom tempo, ganhei o apelido de “sabedoria humana”. Mas eu cresci...

Pensei, quando moleque, que um dia poderia vir a ser um sábio. Sonhava em adquirir o conhecimento pleno, inspirado nas coisas divinas e humanas. Das coisas divinas, ninguém nunca me disse nada. E das humanas, o que aprendi foi apanhando. E estudei, estudei e estudei...

Será que aprendi realmente alguma coisa depois de tanto estudo?

Penso, então, na seguinte hipótese: um disco voador baixa no meu quintal e sou abduzido. Logo, logo estou num planetinha bem distante, todo enrolado em fios e eletrodos. Os extraterrestres querem tirar de mim informações preciosas sobre a vida na Terra.

Que sei eu?

Saber diferenciar boi de vaca, laranja de mexerica, mármore de granito não é de grande valia nessas horas. Eles querem saber sobre artefatos bélicos: quantos são, onde estão, qual o poder de destruição. É uma linguagem estranha, falada em vários tons e megatons.

De máquinas e artefatos, conheço apenas o funcionamento de algumas: não da metralhadora, mas da velha Remington; não do helicóptero de guerra, mas do velho pião; não de um lançador de mísseis, mas da velha “seta’’.

Que teria eu para ensinar a eles?

Sei alguma coisa de futebol, de religião e política (apesar de todos dizerem que penso errado). Mas não pinto, não cozinho, não costuro, não bordo, não canto nem componho. Não planto nada, não fabrico nada.

Descubro, desolado, que nada sei. Fragmentos, etapas, noções foi o que aprendi nessa vida. Apenas isso, mas nada por inteiro, do início ao fim. Logo eu, o grande “sabedoria humana”! Eles também descobrem minha ignorância – ET não é bicho bobo. Decepcionados, me jogam de volta ao meu quintal.

Também estou decepcionado comigo. Sinto-me inútil. Anos e anos de estudo e de vivência para acabar assim: rejeitado por não saber nada?

E ainda me vêm uns sujeitos lá de outro planeta querer que eu saiba sobre guerras. Não dei boas respostas. Nada falei, e nada falaria, mesmo que soubesse.

Ah, mas se eles tivessem me perguntado sobre bisca de “rele” ou canastra, sobre torresmo com cachacinha ou cerveja com rã frita, sobre o Flamengo de Zico ou a seleção de 70, sobre Drummond e Rubem Braga, sobre amores feitos e desfeitos, das coisas divinas que passam pela alma humana... enfim, se aqueles seres robotizados tivessem perguntado sobre o que realmente me interessa, o que vivo no meu dia-a-dia e que, por força da repetição, acabo aprendendo... mas não: eles só queriam saber das realidades práticas, fúteis e odiosas da vida.

Azar deles. Pegaram o homem errado. Ou não sabiam que sou apenas um mero escritor?

Apenas um mero escritor... Talvez um cronista que, apanhando pelas estradas da vida, descobriu que é nas pequenas coisas do dia-a-dia que a humanidade se fez – que é nas relações de amor e amizade que reside a verdadeira sabedoria humana.